São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


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RESENHA DA SEMANA
Nem o sexo salva

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


André Sant'Anna, 34, é de longe a melhor coisa que poderia ter acontecido à literatura brasileira nos últimos anos. Como costuma ocorrer nesses casos, seu primeiro livro, "Amor", lançado em 98 pelas Edições Dubolso, de Sabará, foi ignorado pela grande maioria, a começar pelos livreiros que se recusam a expor em suas pilhas o que é estranho aos olhos do mercado. Agora é a vez de "Sexo", segundo livro do autor, que inaugura a Coleção Ficções da editora Sette Letras.
André Sant'Anna não compõe, não faz conchavos ou concessões, ao contrário de muitos dos que posam de críticos independentes e ferozes das injustiças e dos horrores de um país cada vez mais mesquinho, como o Brasil de hoje, mas que no fundo, nas entrelinhas de seus aparentes ataques e denúncias, estão apenas lançando as redes de uma campanha de autopromoção e pensando no próprio futuro.
Os livros de André Sant'Anna destilam uma raiva típica de grandes autores (de Céline a Thomas Bernhard), uma raiva em que não há mais possibilidade de composição e da qual ninguém sai ileso, nem o próprio autor, isolado na independência irredutível de seu projeto. Só essa determinação cega (uma cegueira que é na realidade vidência) é capaz de levar alguém a fazer literatura de verdade a despeito da mediocridade e da cegueira ambiente, sem compromissos com o mercado ou com a corporação da média.
"Amor", que deve ser reeditado pela Sette Letras, pode ser lido como uma visão planetária, simultaneamente religiosa (no sentido de religar todas as coisas, nem que seja pelo sangue que está por trás de tudo) e anti-religiosa (contra toda a hipocrisia das igrejas, sejam elas quais forem, a começar pela mídia).
É um painel de tudo o que existe, ressaltando as ligações que as convenções tentam esconder: um grande magma escatológico de sangue de criancinhas, petróleo, chefes de Estado, acontecimentos jornalísticos, ícones pop e imagens de TV.
"Sexo" é fruto de um ponto de vista semelhante, só que por um ângulo mais fechado, sobre o Brasil e, em especial, sobre São Paulo. É, por um lado, o retrato que faltava dessa cidade de banqueiros, políticos corruptos e publicitários, uma cidade formada por uma onda de emergentes e um mar de miseráveis, sua imagem mais abrangente e implacável. Mas também não é um tratado de sociologia. É literatura. Ou seja, imaginação e invenção.
Em "Amor", André Sant'Anna fazia aflorar a ligação impensada de todas as coisas ao juntar alhos com bugalhos numa espécie de mantra repetitivo e que, pela simples enumeração, reverberava o impacto de uma raiva visionária. Havia algo de ingênuo, como se uma criança resolvesse descrever o mundo inteiro, diante do que obviamente não pudesse compreender. Mas vinha justamente desse grau zero da compreensão das coisas, que permite ver o óbvio com estranhamento, a originalidade do texto.
Em "Sexo", a aparente ingenuidade foi substituída por uma aparente debilidade, que não é mais do que uma reação ao cinismo local. A repetição agora é redundância cômica. A imbecilidade das repetições do texto é o ataque mais veemente à imbecilidade da realidade demagógica e hipócrita que ele descreve.
Os textos de André Sant'Anna se desdobram em tiques progressivos. Em "Sexo", os personagens são nomeados por um conjunto acumulativo de adjetivos e apostos, que vão se agregando conforme eles participam de novas situações, de forma que ao final quase todo o texto é tomado por esses "nomes compostos" ligados uns aos outros por verbos que estabelecem algum tipo de desejo entre eles.
Em "Amor", era o magma escatológico que dava liga ao mundo. Em "Sexo", é o sexo que liga todos os indivíduos, e todas as classes e raças, acirrando ainda mais o conflito e o ódio que uns poucos tentam encobrir ao pregar um discurso de comunhão com base no amor comum e no bem-estar do mercado.
Por exemplo: "O Negro, Que Fedia, só queria fazer sexo com a Trocadora Do Ônibus No Qual ele, Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos Os Dias, Às Seis Horas da Tarde. Mas, para não apanhar do Filho da Trocadora Do Ônibus No Qual ele, Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos os Dias, Às Seis Horas da Tarde, o Negro, Que Fedia, resolveu acompanhar a Trocadora Do Ônibus No Qual ele, Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos os Dias, Às Seis Horas da Tarde, até o templo e entregar seu coração a Cristo".
A criação dessa língua débil mental, que se inspira de uma maneira perversa nos lugares-comuns da mídia e nas pesquisas de comportamento, joga uma luz irritada sobre o processo de imbecilização passiva a que nos prestamos diariamente. E o mais terrível -e genial- é que termina nos matando de rir.


Avaliação:     

Livro: Sexo Autor: André Sant'Anna Editora: Sette Letras Quanto: R$ 18 (143 págs.)

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