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RESENHA DA SEMANA
Nem o sexo salva
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
André Sant'Anna, 34, é de
longe a melhor coisa que poderia ter acontecido à literatura
brasileira nos últimos anos.
Como costuma ocorrer nesses
casos, seu primeiro livro,
"Amor", lançado em 98 pelas
Edições Dubolso, de Sabará, foi
ignorado pela grande maioria,
a começar pelos livreiros que se
recusam a expor em suas pilhas
o que é estranho aos olhos do
mercado. Agora é a vez de "Sexo", segundo livro do autor,
que inaugura a Coleção Ficções
da editora Sette Letras.
André Sant'Anna não compõe, não faz conchavos ou concessões, ao contrário de muitos
dos que posam de críticos independentes e ferozes das injustiças e dos horrores de um
país cada vez mais mesquinho,
como o Brasil de hoje, mas que
no fundo, nas entrelinhas de
seus aparentes ataques e denúncias, estão apenas lançando as redes de uma campanha
de autopromoção e pensando
no próprio futuro.
Os livros de André Sant'Anna
destilam uma raiva típica de
grandes autores (de Céline a
Thomas Bernhard), uma raiva
em que não há mais possibilidade de composição e da qual
ninguém sai ileso, nem o próprio autor, isolado na independência irredutível de seu projeto. Só essa determinação cega
(uma cegueira que é na realidade vidência) é capaz de levar alguém a fazer literatura de verdade a despeito da mediocridade e da cegueira ambiente, sem
compromissos com o mercado
ou com a corporação da média.
"Amor", que deve ser reeditado pela Sette Letras, pode ser
lido como uma visão planetária, simultaneamente religiosa
(no sentido de religar todas as
coisas, nem que seja pelo sangue que está por trás de tudo) e
anti-religiosa (contra toda a hipocrisia das igrejas, sejam elas
quais forem, a começar pela
mídia).
É um painel de tudo o que
existe, ressaltando as ligações
que as convenções tentam esconder: um grande magma escatológico de sangue de criancinhas, petróleo, chefes de Estado, acontecimentos jornalísticos, ícones pop e imagens de
TV.
"Sexo" é fruto de um ponto
de vista semelhante, só que por
um ângulo mais fechado, sobre
o Brasil e, em especial, sobre
São Paulo. É, por um lado, o retrato que faltava dessa cidade
de banqueiros, políticos corruptos e publicitários, uma cidade formada por uma onda
de emergentes e um mar de miseráveis, sua imagem mais
abrangente e implacável. Mas
também não é um tratado de
sociologia. É literatura. Ou seja,
imaginação e invenção.
Em "Amor", André Sant'Anna fazia aflorar a ligação impensada de todas as coisas ao
juntar alhos com bugalhos numa espécie de mantra repetitivo e que, pela simples enumeração, reverberava o impacto
de uma raiva visionária. Havia
algo de ingênuo, como se uma
criança resolvesse descrever o
mundo inteiro, diante do que
obviamente não pudesse compreender. Mas vinha justamente desse grau zero da compreensão das coisas, que permite ver o óbvio com estranhamento, a originalidade do texto.
Em "Sexo", a aparente ingenuidade foi substituída por
uma aparente debilidade, que
não é mais do que uma reação
ao cinismo local. A repetição
agora é redundância cômica. A
imbecilidade das repetições do
texto é o ataque mais veemente
à imbecilidade da realidade demagógica e hipócrita que ele
descreve.
Os textos de André Sant'Anna se desdobram em tiques
progressivos. Em "Sexo", os
personagens são nomeados
por um conjunto acumulativo
de adjetivos e apostos, que vão
se agregando conforme eles
participam de novas situações,
de forma que ao final quase todo o texto é tomado por esses
"nomes compostos" ligados
uns aos outros por verbos que
estabelecem algum tipo de desejo entre eles.
Em "Amor", era o magma escatológico que dava liga ao
mundo. Em "Sexo", é o sexo
que liga todos os indivíduos, e
todas as classes e raças, acirrando ainda mais o conflito e o
ódio que uns poucos tentam
encobrir ao pregar um discurso de comunhão com base no
amor comum e no bem-estar
do mercado.
Por exemplo: "O Negro, Que
Fedia, só queria fazer sexo com
a Trocadora Do Ônibus No
Qual ele, Negro, Que Fedia,
Voltava Para Casa Todos Os
Dias, Às Seis Horas da Tarde.
Mas, para não apanhar do Filho da Trocadora Do Ônibus
No Qual ele, Negro, Que Fedia,
Voltava Para Casa Todos os
Dias, Às Seis Horas da Tarde, o
Negro, Que Fedia, resolveu
acompanhar a Trocadora Do
Ônibus No Qual ele, Negro,
Que Fedia, Voltava Para Casa
Todos os Dias, Às Seis Horas
da Tarde, até o templo e entregar seu coração a Cristo".
A criação dessa língua débil
mental, que se inspira de uma
maneira perversa nos lugares-comuns da mídia e nas pesquisas de comportamento, joga
uma luz irritada sobre o processo de imbecilização passiva
a que nos prestamos diariamente. E o mais terrível -e genial- é que termina nos matando de rir.
Avaliação:
Livro: Sexo
Autor: André Sant'Anna
Editora: Sette Letras
Quanto: R$ 18 (143 págs.)
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