São Paulo, terça-feira, 11 de dezembro de 2001

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LITERATURA

"O Pão do Corvo" causa misto de medo e fascínio

NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lendo "O Pão do Corvo", mais recente livro de contos de Nuno Ramos, ouvem-se, ao mesmo tempo, as vozes de Italo Calvino, Julio Cortázar, Franz Kafka e de algum autor como Júlio Verne.
Como nas "Cosmicômicas", de Calvino, há uma fabulação construída a partir da ciência e da matéria física; uma graça esquisita, uma risada de que não se conhece bem o porquê, como em Cortázar; uma irritação provocada por golpes certos da linguagem seca, como em Kafka, e um conhecimento científico das coisas vistas a partir de seu lado de dentro, que é crível e incrível, como em Verne.
Mas o texto de Nuno Ramos é tudo isso e também não é. Em primeiro lugar, porque todos esses autores reunidos já são outra coisa; não se trata de uma colagem de partes soltas. Mas o que é mais importante é que existe algo único em "O Pão do Corvo". Uma total ausência de protagonistas (todos os personagens são "eu", "ele", "ela", "nós"), ausência de história, de espaço e de tempo certos. É como se ouvíssemos a fala das coisas, as coisas pensando sobre si mesmas, antes de serem inseridas em algum lugar narrativo ou paisagem. Até mesmo quando se sabe que o "eu" é uma pessoa, trata-se de uma pessoa-coisa, como a pele ou a carne da pessoa falando de si. São conjecturas físicas sobre a condição quase repulsiva de ser uma coisa.
Em "Lição de Geologia", por exemplo, o conto que abre o livro, as coisas, num estado de superconsciência de si , têm vergonha de ser o que são e, por isso, cobrem-se de pó, fuligem, penugem, retraindo-se e disfarçando sua identidade.
Aliás, o pó reaparece por todo o livro em superfícies sujas, cinzentas, até sufocar o leitor numa claustrofobia de palavras e imagens que sempre nos grudam ao nosso estado de bicho farejante.
Por vezes, parecemos escutar a fala das cinzas, das sementes antes de crescerem, das carcaças depois da morte, dos insetos observando os humanos, das palavras esperando serem escritas ou usadas.
Em "Um Comunicado sobre as Palavras", estas últimas são divididas em dois grandes grupos: "As que são súbitas e as que roubam tempo". As súbitas são raras, breves, "cercadas de espanto", precisas e harmoniosas, dizendo exatamente o que querem dizer. As "rouba-tempo", ao contrário, vêm sempre em bandos, são superficiais, imperfeitas e altamente reprodutíveis. Aparentam lógica, mas, na verdade, nos afastam das coisas, como a camada de fuligem que também nos esconde das coisas, no já citado "Lição de Geologia". E "O Pão do Corvo" é todo escrito com palavras súbitas.
É como trocar a "rouba-tempo" "morte" pela súbita "O Pão do Corvo", que é física, igual a si mesma, mais carregada de ação.
O conto "A Casa Tomada", de Cortázar, reaparece em "Vamos Voltar para a Neve", em que os personagens não sabem como foram parar naquele lugar, deixando os filhos, a casa que tinham construído. E o personagem continua repetindo: "Como foi que nós pudemos se ainda era dia, eu não dormi? Como foi que nós pudemos se já era dia e (...) deixamos de fora a casa que nós tínhamos e a marina e o sofá dourado?".
O misterioso poder do personagem do porteiro, no conto "O Porteiro", de Kafka, também visita os contos de "O Pão do Corvo", como "Tuas Ordens", em que um suposto fazendeiro dá ordens até aos animais para que achem "ela", sendo que não se sabe quem é "ela", onde "ela" está nem por que desapareceu, até que o portador das ordens ordena também à desaparecida que não se deixe encontrar por ele.
O conto "O Velho em Questão" sintetiza, no desejo de mais um estranho personagem, o desejo da própria linguagem do livro, que fatalmente contagia também o leitor: tornar-se pedra. Não é a mesma pedra de João Cabral: plena, embora áspera e seca. É uma pedra cheia de arestas, musgos, ouriços. Pedra-vegetal.
Talvez seja por isso que se termina a leitura de "O Pão do Corvo" com um misto de medo e fascínio: fascínio pela linguagem, pelo estranhamento, e medo de reconhecer-se demais, medo do espelho que reflete nosso ser-coisa.


Noemi Jaffe é mestre em literatura brasileira pela USP e está preparando "Macunaíma" para a coleção Folha Explica


O Pão do Corvo
    
Autor: Nuno Ramos
Editora: 34 Quanto: R$ 15 (85 págs.)



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