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LITERATURA
"O Pão do Corvo" causa misto de medo e fascínio
NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lendo "O Pão do Corvo",
mais recente livro de contos
de Nuno Ramos, ouvem-se, ao
mesmo tempo, as vozes de Italo
Calvino, Julio Cortázar, Franz
Kafka e de algum autor como Júlio Verne.
Como nas "Cosmicômicas", de
Calvino, há uma fabulação construída a partir da ciência e da matéria física; uma graça esquisita,
uma risada de que não se conhece
bem o porquê, como em Cortázar; uma irritação provocada por
golpes certos da linguagem seca,
como em Kafka, e um conhecimento científico das coisas vistas
a partir de seu lado de dentro, que
é crível e incrível, como em Verne.
Mas o texto de Nuno Ramos é
tudo isso e também não é. Em primeiro lugar, porque todos esses
autores reunidos já são outra coisa; não se trata de uma colagem de
partes soltas. Mas o que é mais
importante é que existe algo único em "O Pão do Corvo". Uma total ausência de protagonistas (todos os personagens são "eu",
"ele", "ela", "nós"), ausência de
história, de espaço e de tempo
certos. É como se ouvíssemos a fala das coisas, as coisas pensando
sobre si mesmas, antes de serem
inseridas em algum lugar narrativo ou paisagem. Até mesmo
quando se sabe que o "eu" é uma
pessoa, trata-se de uma pessoa-coisa, como a pele ou a carne da
pessoa falando de si. São conjecturas físicas sobre a condição quase repulsiva de ser uma coisa.
Em "Lição de Geologia", por
exemplo, o conto que abre o livro,
as coisas, num estado de superconsciência de si , têm vergonha
de ser o que são e, por isso, cobrem-se de pó, fuligem, penugem, retraindo-se e disfarçando
sua identidade.
Aliás, o pó reaparece por todo o
livro em superfícies sujas, cinzentas, até sufocar o leitor numa
claustrofobia de palavras e imagens que sempre nos grudam ao
nosso estado de bicho farejante.
Por vezes, parecemos escutar a
fala das cinzas, das sementes antes
de crescerem, das carcaças depois
da morte, dos insetos observando
os humanos, das palavras esperando serem escritas ou usadas.
Em "Um Comunicado sobre as
Palavras", estas últimas são divididas em dois grandes grupos:
"As que são súbitas e as que roubam tempo". As súbitas são raras,
breves, "cercadas de espanto",
precisas e harmoniosas, dizendo
exatamente o que querem dizer.
As "rouba-tempo", ao contrário,
vêm sempre em bandos, são superficiais, imperfeitas e altamente
reprodutíveis. Aparentam lógica,
mas, na verdade, nos afastam das
coisas, como a camada de fuligem
que também nos esconde das coisas, no já citado "Lição de Geologia". E "O Pão do Corvo" é todo
escrito com palavras súbitas.
É como trocar a "rouba-tempo"
"morte" pela súbita "O Pão do
Corvo", que é física, igual a si mesma, mais carregada de ação.
O conto "A Casa Tomada", de
Cortázar, reaparece em "Vamos
Voltar para a Neve", em que os
personagens não sabem como foram parar naquele lugar, deixando os filhos, a casa que tinham
construído. E o personagem continua repetindo: "Como foi que
nós pudemos se ainda era dia, eu
não dormi? Como foi que nós pudemos se já era dia e (...) deixamos
de fora a casa que nós tínhamos e
a marina e o sofá dourado?".
O misterioso poder do personagem do porteiro, no conto "O
Porteiro", de Kafka, também visita os contos de "O Pão do Corvo",
como "Tuas Ordens", em que um
suposto fazendeiro dá ordens até
aos animais para que achem
"ela", sendo que não se sabe
quem é "ela", onde "ela" está nem
por que desapareceu, até que o
portador das ordens ordena também à desaparecida que não se
deixe encontrar por ele.
O conto "O Velho em Questão"
sintetiza, no desejo de mais um
estranho personagem, o desejo da
própria linguagem do livro, que
fatalmente contagia também o
leitor: tornar-se pedra. Não é a
mesma pedra de João Cabral: plena, embora áspera e seca. É uma
pedra cheia de arestas, musgos,
ouriços. Pedra-vegetal.
Talvez seja por isso que se termina a leitura de "O Pão do Corvo" com um misto de medo e fascínio: fascínio pela linguagem, pelo estranhamento, e medo de reconhecer-se demais, medo do espelho que reflete nosso ser-coisa.
Noemi Jaffe é mestre em literatura brasileira pela USP e está preparando "Macunaíma" para a coleção Folha Explica
O Pão do Corvo
Autor: Nuno Ramos
Editora: 34
Quanto: R$ 15 (85 págs.)
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