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NELSON ASCHER
Final feliz
O cinema faz o possível e o impossível para não transgredir o final feliz em suas histórias
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ENQUANTO AGUARDÁVAMOS, do
lado de fora, o fim da sessão
anterior, comentávamos, ouvindo os gritos do público, que o pessoal lá dentro não parecia muito familiarizado com truques cinematográficos.
Em seguida, meus amigos e eu assistimos rindo ao filme de horror e
"matamos" de antemão, uma a uma,
as cenas assustadoras: "agora ela vai
se vingar transformando a festa do
colégio num banho de sangue" ou
"daqui a pouco os facões da cozinha
se cravarão na mãe para que ela fique que nem a imagem de São Sebastião crivado de flechas".
Prestes, portanto, a sair desapontado da sala, fui pego de surpresa por
uma mão que, emergindo sangrenta
da terra, agarrou uma moça, a única
sobrevivente do massacre acima,
que, caridosa e compreensiva, estava pondo flores no túmulo da perpetradora.
Deixando (sem querer) meu distanciamento brechtiano de lado e
confundindo a realidade alternativa
da tela com a minha, levei um belo
susto. Incerto de ter gritado ou não,
consultei um de meus colegas. Ele,
porém, respondeu-me que não sabia
de nada, porque estivera ocupado
com seu próprio grito.
O filme era "Carrie, a Estranha",
de Brian De Palma, e seu susto derradeiro fora provocado pela "inversão da expectativa", um recurso que
consistia, no seu caso, em preparar a
audiência para um tipo de desfecho
e, aí, oferecer-lhe o oposto. Como esperávamos um final feliz (que, aliás,
se concretiza tão logo se percebe que
a cena era um pesadelo da moça), o
braço irrompendo chão afora nos
pegou de surpresa não somente ao
contrariar o que o filme nos levava a
esperar, como negando a certeza arquetípica de que boas ações (pois, na
escola hostil, ela defendera Carrie)
costumam ser recompensadas.
Quando se trata dos temas relevantes, esquerda e direita raramente discordam. Ambas, por exemplo,
desdenham a democracia "burguesa", o império da lei e colocam a coletividade acima do indivíduo. Ambas
privilegiam os fins em detrimento
dos meios, conspiram, vêem conspiração ou manipulação em tudo e são
tanto antiamericanas como anti-semitas ou anti-sionistas (anti-sionismo é a versão eufemística e pós-moderna do anti-semitismo).
Sempre dispostas a submeter, em
prol dos interesses mais nobres
(tanto faz se da família e da pátria ou
dos pobres e dos oprimidos) os
meios de comunicação a seu controle, elas consideram o cinema, especialmente o hollywoodiano (que ou
subverte os valores tradicionais, ou
lava o cérebro dos trabalhadores), a
pior das influências que já surgiram.
De tão nefasto, o cinema só pode ser
resgatado caso seja supervisionado,
vigiado ou produzido pela minoria
capaz de ver o mal que ele faz à
maioria indefesa.
Como o grosso da discussão acerca da arte em questão se trava há
mais de um século entre, por um lado, os que o temem e veneram como
supremo instrumento de propaganda e, por outro, aqueles que confiam
pelo menos um pouco na inteligência e no senso crítico do Homo sapiens mediano, beira o constrangedor constatar que o cinema exerceu, sim, certa influência sobre a visão contemporânea de mundo. E
não é porque se deve antes a elementos formais da narrativa do
que a seus conteúdos explícitos ou
(para os paranóicos) subliminares
que tal influência tem se mostrado
menos negativa.
De todas as convenções imagináveis, há uma que o cinema faz o
possível e o impossível para quase
nunca transgredir: o final feliz.
Mesmo que mocinho e mocinha
não fiquem juntos, mesmo que o
herói fracasse e morra, mesmo que
a doença se prove incurável e nada
mais dê certo, ainda assim é a exceção das exceções ver uma criança
morrer na tela, o vilão escapar de
consciência limpa e a afronta não
ser reparada.
A justiça, nem que seja apenas a
poética, se faz, nem há nenhum mal
que seja absoluto. Assim, quando
chega ao grande público, até a história limite do Holocausto acaba,
como ocorre em "A Lista de Schindler", contada do ponto de vista de
algumas dúzias de sobreviventes,
não dos seis milhões.
O automatismo pavloviano do final feliz se entranhou tão a fundo
na consciência moderna que, a despeito dos temores pré-fabricados,
como aqueles nos quais os "ongolóides" ecológicos se especializam
(ontem a nova era glacial iminente,
hoje o aquecimento global etc.),
nossos dias chegam a sofrer de um
excesso de otimismo, otimismo
que impede muitos de compreenderem a dimensão dos perigos e
ameaças que rondam o futuro próximo.
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