São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

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NELSON ASCHER

Final feliz


O cinema faz o possível e o impossível para não transgredir o final feliz em suas histórias

ENQUANTO AGUARDÁVAMOS, do lado de fora, o fim da sessão anterior, comentávamos, ouvindo os gritos do público, que o pessoal lá dentro não parecia muito familiarizado com truques cinematográficos.
Em seguida, meus amigos e eu assistimos rindo ao filme de horror e "matamos" de antemão, uma a uma, as cenas assustadoras: "agora ela vai se vingar transformando a festa do colégio num banho de sangue" ou "daqui a pouco os facões da cozinha se cravarão na mãe para que ela fique que nem a imagem de São Sebastião crivado de flechas".
Prestes, portanto, a sair desapontado da sala, fui pego de surpresa por uma mão que, emergindo sangrenta da terra, agarrou uma moça, a única sobrevivente do massacre acima, que, caridosa e compreensiva, estava pondo flores no túmulo da perpetradora.
Deixando (sem querer) meu distanciamento brechtiano de lado e confundindo a realidade alternativa da tela com a minha, levei um belo susto. Incerto de ter gritado ou não, consultei um de meus colegas. Ele, porém, respondeu-me que não sabia de nada, porque estivera ocupado com seu próprio grito.
O filme era "Carrie, a Estranha", de Brian De Palma, e seu susto derradeiro fora provocado pela "inversão da expectativa", um recurso que consistia, no seu caso, em preparar a audiência para um tipo de desfecho e, aí, oferecer-lhe o oposto. Como esperávamos um final feliz (que, aliás, se concretiza tão logo se percebe que a cena era um pesadelo da moça), o braço irrompendo chão afora nos pegou de surpresa não somente ao contrariar o que o filme nos levava a esperar, como negando a certeza arquetípica de que boas ações (pois, na escola hostil, ela defendera Carrie) costumam ser recompensadas.
Quando se trata dos temas relevantes, esquerda e direita raramente discordam. Ambas, por exemplo, desdenham a democracia "burguesa", o império da lei e colocam a coletividade acima do indivíduo. Ambas privilegiam os fins em detrimento dos meios, conspiram, vêem conspiração ou manipulação em tudo e são tanto antiamericanas como anti-semitas ou anti-sionistas (anti-sionismo é a versão eufemística e pós-moderna do anti-semitismo).
Sempre dispostas a submeter, em prol dos interesses mais nobres (tanto faz se da família e da pátria ou dos pobres e dos oprimidos) os meios de comunicação a seu controle, elas consideram o cinema, especialmente o hollywoodiano (que ou subverte os valores tradicionais, ou lava o cérebro dos trabalhadores), a pior das influências que já surgiram. De tão nefasto, o cinema só pode ser resgatado caso seja supervisionado, vigiado ou produzido pela minoria capaz de ver o mal que ele faz à maioria indefesa.
Como o grosso da discussão acerca da arte em questão se trava há mais de um século entre, por um lado, os que o temem e veneram como supremo instrumento de propaganda e, por outro, aqueles que confiam pelo menos um pouco na inteligência e no senso crítico do Homo sapiens mediano, beira o constrangedor constatar que o cinema exerceu, sim, certa influência sobre a visão contemporânea de mundo. E não é porque se deve antes a elementos formais da narrativa do que a seus conteúdos explícitos ou (para os paranóicos) subliminares que tal influência tem se mostrado menos negativa.
De todas as convenções imagináveis, há uma que o cinema faz o possível e o impossível para quase nunca transgredir: o final feliz.
Mesmo que mocinho e mocinha não fiquem juntos, mesmo que o herói fracasse e morra, mesmo que a doença se prove incurável e nada mais dê certo, ainda assim é a exceção das exceções ver uma criança morrer na tela, o vilão escapar de consciência limpa e a afronta não ser reparada.
A justiça, nem que seja apenas a poética, se faz, nem há nenhum mal que seja absoluto. Assim, quando chega ao grande público, até a história limite do Holocausto acaba, como ocorre em "A Lista de Schindler", contada do ponto de vista de algumas dúzias de sobreviventes, não dos seis milhões.
O automatismo pavloviano do final feliz se entranhou tão a fundo na consciência moderna que, a despeito dos temores pré-fabricados, como aqueles nos quais os "ongolóides" ecológicos se especializam (ontem a nova era glacial iminente, hoje o aquecimento global etc.), nossos dias chegam a sofrer de um excesso de otimismo, otimismo que impede muitos de compreenderem a dimensão dos perigos e ameaças que rondam o futuro próximo.


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