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Ilustrada 50 anos
A arte se torna arte ao ser consumida, diz Lobão
2º debate em comemoração dos 50 anos da Ilustrada foi sobre "Cultura e Consumo"
Para o cantor e compositor Lobão, não há dúvida
de que a arte mantém seu potencial transformador mesmo ao se tornar produto de consumo: "A
arte se torna arte quando é consumida", disse ele
anteontem à noite, no auditório do Masp, no debate "Cultura
e Consumo". Em comemoração dos 50 anos da Ilustrada, o
encontro teve mediação do jornalista Alcino Leite Neto, editor de moda da Folha. O cineasta José Padilha, que passou
boa parte do debate relativizando conceitos ("vou me referir
a cultura como o que sai na Ilustrada e a consumo como
transação que envolve moeda"), também fez o seu elogio do
consumo: "Acho ótimo o mercado, porque, se uma sociedade
não tem, normalmente há menos liberdade". Já o psicanalista Contardo Calligaris, colunista da Ilustrada, ressaltou que
o consumo "é o lugar onde cada um inventa quem é". Cristovão Tezza, escritor mais premiado de 2008, destacou que
"um livro é um produto cultural como qualquer outro, de forma mais forte do que em qualquer época da história".
DA REPORTAGEM LOCAL
OPOSTO DO CONSUMO
Contardo - O consumo, para a
maioria das pessoas da minha
geração, era coisa ruim. Mas o
que é o contrário do consumo?
Não é o que alguns americanos
chamam de "simple life" [vida
simples]. A alternativa é o que
chamavam no século 18 de leis
suntuárias, que diziam que alguém, segundo sua extração
social, podia ter acesso a certos
bens. Prefiro o consumo, que é
o lugar onde cada um inventa
quem é. Que permite uma diversidade imensa de estilos de
vida. É o que torna nossa sociedade uma das de maior mobilidade de todos os tempos.
CONTRAPARTIDA ÉTICA
Tezza - A literatura, com alguma presunção, sempre foi sentida como uma atividade que
não se enquadra num processo
de produção. O impulso para
escrever era uma espécie de
projeto existencial: estabelecer
um modo de vida que fosse a
contrapartida ética ao que estava aí. Sob o ponto de vista do
indivíduo, [cultura e consumo]
eram incompatíveis. Mas é claro que é ótimo para um escritor
ter um livro que seja bem distribuído, que o produto seja bonito etc. O livro é um produto
cultural como qualquer outro,
de forma mais forte do que em
qualquer época da história.
CONCEITOS
Padilha - Existe uma definição
ampla [de cultura] que é diferente da idéia do conjunto de
produtos específicos como livros, CDs etc. O mesmo se aplica ao consumo. Acho ótimo o
mercado, porque, se uma sociedade não tem, normalmente há
menos liberdade. Então vou
me referir a cultura como o que
sai na Ilustrada. E o consumo
como transação que envolve
moeda. Depois de restringir isso, vou dizer que não entendo
de um ou de outro, nem com
essa restrição.
SEMPRE HOUVE GRANA
Lobão - Deveríamos deixar de
colocar a cultura em um patamar muito etéreo. Em todo o
transcorrer da arte, sempre
houve grana. No período barroco, o artista tinha de fazer um
périplo em castelos. A gravadora mudou de patamar, mas não
pode ser aniquilada, enquanto
força de organização. Se ficarmos com pruridos de botar a
mão na massa, vem [a banda]
Calypso e toca. Hoje, a classe
média lida com o rock de forma
franciscana, de que não se deve
sujar a mão com lucro. Meu
diapasão seria o de combater
essa mentalidade tacanha.
NOVAS MÍDIAS E
DEMOCRACIA
Padilha - A internet democratiza a informação, mas esta pode ser transmitida pela internet só por quem a tem. A democratização é relativa. A gente não pode imaginar que está
democratizando a produção
cultural simplesmente porque
a está digitalizando.
Tezza - Potencialmente, a
internet é uma revolução fantástica da palavra escrita. No
Brasil, a televisão foi um agente
civilizador porque chegou às
massas antes da palavra escrita. Na Europa e nos EUA, a TV
já encontrou uma civilização
escrita instalada. A internet é o
império da palavra escrita
-que voltou a ser um valor social poderosíssimo.
MARKETING E
PUBLICIDADE
Padilha - Acho [possível um
produto cultural sobreviver
sem marketing]. "Tropa de Elite" [dirigido por ele] é um
exemplo. Uma das versões em
montagem foi roubada e, sem
R$ 1 de marketing, todo o esforço que eu fazia era para impedir a venda do filme.
Lobão - É possível, mas é
uma coisa extemporânea, heterodoxa. A gente tem de dar a
cara a tapa que, sem publicidade, nada funciona. Você faz um
disco com US$ 20 mil e gasta
US$ 500 mil na publicidade.
Padilha - O sucesso de um
produto cultural não está determinado pelo marketing. Depende da natureza do produto.
O primeiro filme do Casseta &
Planeta ["A Taça do Mundo É
Nossa", 2003] é um exemplo.
A CULTURA E SEU
PÚBLICO
Tezza - Jamais escrevi pensando no leitor. É uma viagem
meio autista. Tenho extrema
dificuldade [em levar em conta
a relação com o leitor]. Já tentaram me encomendar livro, eu
desisto. Depois que o livro é entregue à editora, aí é um produto. No meu caso, o leitor é uma
entidade misteriosa.
Lobão - No formato, [o público é importante] sim, porque elegi música pop para tocar
no rádio. Mas o assunto, se estou me interessando por física
quântica ou bloco de samba, aí
é um estímulo subjetivo. Cabe
a mim sintetizar isso tudo e botar naquele formato que eu me
proponho a fazer.
Contardo - Acho pouco dinâmico para a cultura não ter
de se confrontar com as exigências do mercado. Seria legal
a gente ter o problema de como
trazer o público.
Padilha - Concordo. Os dois
sistemas podem coexistir: o cinema de estúdio e fundações
que financiam o cinema independente. Tem de ter a confrontação com o mercado, mas
também o artista que arrisca.
ARTE
TRANSFORMADORA
Tezza - Cabe de tudo no mercado. Não vejo um risco automático [de a arte perder seu caráter transformador ao virar
produto de consumo].
Lobão - Cabe a nós ter capacidade de síntese para fazer valer o que se tem a dizer artisticamente dentro de moldes em
princípio desconfortáveis.
Padilha - Não existe uma
contradição, uma incompatibilidade entre mercado e arte. O
mercado também tem uma
enorme potência transformadora. O mercado não é reacionário. Quem disse isso?
Lobão - A arte pode e deve se
tornar arte enquanto é consumida, é objeto de consumo.
Contardo - Vamos tomar
como exemplo o que muitos
consideram o nível mais baixo
da expressão artística: a novela
das oito. Um personagem negro positivo ali vai ser infinitamente mais transformadora do
que 14 performances de negros
e brancos na Bienal.
Assista ao vídeo do debate
de terça-feira
www.folha.com.br/083451
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