São Paulo, quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ilustrada 50 anos

A arte se torna arte ao ser consumida, diz Lobão

2º debate em comemoração dos 50 anos da Ilustrada foi sobre "Cultura e Consumo"

Para o cantor e compositor Lobão, não há dúvida de que a arte mantém seu potencial transformador mesmo ao se tornar produto de consumo: "A arte se torna arte quando é consumida", disse ele anteontem à noite, no auditório do Masp, no debate "Cultura e Consumo". Em comemoração dos 50 anos da Ilustrada, o encontro teve mediação do jornalista Alcino Leite Neto, editor de moda da Folha. O cineasta José Padilha, que passou boa parte do debate relativizando conceitos ("vou me referir a cultura como o que sai na Ilustrada e a consumo como transação que envolve moeda"), também fez o seu elogio do consumo: "Acho ótimo o mercado, porque, se uma sociedade não tem, normalmente há menos liberdade". Já o psicanalista Contardo Calligaris, colunista da Ilustrada, ressaltou que o consumo "é o lugar onde cada um inventa quem é". Cristovão Tezza, escritor mais premiado de 2008, destacou que "um livro é um produto cultural como qualquer outro, de forma mais forte do que em qualquer época da história".

DA REPORTAGEM LOCAL


OPOSTO DO CONSUMO
Contardo - O consumo, para a maioria das pessoas da minha geração, era coisa ruim. Mas o que é o contrário do consumo?
Não é o que alguns americanos chamam de "simple life" [vida simples]. A alternativa é o que chamavam no século 18 de leis suntuárias, que diziam que alguém, segundo sua extração social, podia ter acesso a certos bens. Prefiro o consumo, que é o lugar onde cada um inventa quem é. Que permite uma diversidade imensa de estilos de vida. É o que torna nossa sociedade uma das de maior mobilidade de todos os tempos.

CONTRAPARTIDA ÉTICA
Tezza - A literatura, com alguma presunção, sempre foi sentida como uma atividade que não se enquadra num processo de produção. O impulso para escrever era uma espécie de projeto existencial: estabelecer um modo de vida que fosse a contrapartida ética ao que estava aí. Sob o ponto de vista do indivíduo, [cultura e consumo] eram incompatíveis. Mas é claro que é ótimo para um escritor ter um livro que seja bem distribuído, que o produto seja bonito etc. O livro é um produto cultural como qualquer outro, de forma mais forte do que em qualquer época da história.

CONCEITOS
Padilha - Existe uma definição ampla [de cultura] que é diferente da idéia do conjunto de produtos específicos como livros, CDs etc. O mesmo se aplica ao consumo. Acho ótimo o mercado, porque, se uma sociedade não tem, normalmente há menos liberdade. Então vou me referir a cultura como o que sai na Ilustrada. E o consumo como transação que envolve moeda. Depois de restringir isso, vou dizer que não entendo de um ou de outro, nem com essa restrição.

SEMPRE HOUVE GRANA
Lobão - Deveríamos deixar de colocar a cultura em um patamar muito etéreo. Em todo o transcorrer da arte, sempre houve grana. No período barroco, o artista tinha de fazer um périplo em castelos. A gravadora mudou de patamar, mas não pode ser aniquilada, enquanto força de organização. Se ficarmos com pruridos de botar a mão na massa, vem [a banda] Calypso e toca. Hoje, a classe média lida com o rock de forma franciscana, de que não se deve sujar a mão com lucro. Meu diapasão seria o de combater essa mentalidade tacanha.

NOVAS MÍDIAS E DEMOCRACIA
Padilha - A internet democratiza a informação, mas esta pode ser transmitida pela internet só por quem a tem. A democratização é relativa. A gente não pode imaginar que está democratizando a produção cultural simplesmente porque a está digitalizando.
Tezza - Potencialmente, a internet é uma revolução fantástica da palavra escrita. No Brasil, a televisão foi um agente civilizador porque chegou às massas antes da palavra escrita. Na Europa e nos EUA, a TV já encontrou uma civilização escrita instalada. A internet é o império da palavra escrita -que voltou a ser um valor social poderosíssimo.

MARKETING E PUBLICIDADE
Padilha - Acho [possível um produto cultural sobreviver sem marketing]. "Tropa de Elite" [dirigido por ele] é um exemplo. Uma das versões em montagem foi roubada e, sem R$ 1 de marketing, todo o esforço que eu fazia era para impedir a venda do filme.
Lobão - É possível, mas é uma coisa extemporânea, heterodoxa. A gente tem de dar a cara a tapa que, sem publicidade, nada funciona. Você faz um disco com US$ 20 mil e gasta US$ 500 mil na publicidade.
Padilha - O sucesso de um produto cultural não está determinado pelo marketing. Depende da natureza do produto.
O primeiro filme do Casseta & Planeta ["A Taça do Mundo É Nossa", 2003] é um exemplo.

A CULTURA E SEU PÚBLICO
Tezza - Jamais escrevi pensando no leitor. É uma viagem meio autista. Tenho extrema dificuldade [em levar em conta a relação com o leitor]. Já tentaram me encomendar livro, eu desisto. Depois que o livro é entregue à editora, aí é um produto. No meu caso, o leitor é uma entidade misteriosa.
Lobão - No formato, [o público é importante] sim, porque elegi música pop para tocar no rádio. Mas o assunto, se estou me interessando por física quântica ou bloco de samba, aí é um estímulo subjetivo. Cabe a mim sintetizar isso tudo e botar naquele formato que eu me proponho a fazer.
Contardo - Acho pouco dinâmico para a cultura não ter de se confrontar com as exigências do mercado. Seria legal a gente ter o problema de como trazer o público.
Padilha - Concordo. Os dois sistemas podem coexistir: o cinema de estúdio e fundações que financiam o cinema independente. Tem de ter a confrontação com o mercado, mas também o artista que arrisca.

ARTE TRANSFORMADORA
Tezza - Cabe de tudo no mercado. Não vejo um risco automático [de a arte perder seu caráter transformador ao virar produto de consumo].
Lobão - Cabe a nós ter capacidade de síntese para fazer valer o que se tem a dizer artisticamente dentro de moldes em princípio desconfortáveis.
Padilha - Não existe uma contradição, uma incompatibilidade entre mercado e arte. O mercado também tem uma enorme potência transformadora. O mercado não é reacionário. Quem disse isso?
Lobão - A arte pode e deve se tornar arte enquanto é consumida, é objeto de consumo.
Contardo - Vamos tomar como exemplo o que muitos consideram o nível mais baixo da expressão artística: a novela das oito. Um personagem negro positivo ali vai ser infinitamente mais transformadora do que 14 performances de negros e brancos na Bienal.


Assista ao vídeo do debate de terça-feira
www.folha.com.br/083451



Texto Anterior: Outro lado: Críticas são "exagero", diz fundação
Próximo Texto: Frases
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.