São Paulo, Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2000


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Diretor faz anticomemoração dos 500 anos

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Antônio Araújo, 32, deu entrevista na sala de seu apartamento, diante de uma imagem dominante de Jesus Cristo. Sua mãe, com quem mora, é muito religiosa.
O diretor de "Apocalipse 1,11", "O Livro de Jó" (95) e "Paraíso Perdido" (92) fala da inspiração bíblica das peças como resultado, em primeiro lugar, do momento em que iniciou a trilogia. No plano pessoal, diz que é um acerto de contas com momentos de religiosidade e ateísmo no seu passado.
Sobre "Apocalipse", que fecha a trilogia, diz que é "um trabalho indignado" e uma "anticomemoração dos 500 anos". Leia, a seguir, trechos da entrevista.

Folha - Qual é a sua visão de "Apocalipse"? O que é a peça?
Antônio Araújo -
Para mim, é um trabalho indignado. Tem uma indignação, uma estupefação diante disso que a gente vive. O trabalho tenta falar disso. Deste momento. É quase uma anticomemoração dos 500 anos.

Folha - O que significou, para você, a trilogia toda?
Araújo -
Não existia uma decisão a priori de fazer uma trilogia. Deu-se dessa maneira, com elementos comuns. Há o suporte bíblico nas três. Os espaços cênicos são carregados de um forte registro emocional e simbólico.

Folha - A dramaturgia.
Araújo -
É, o processo de criação, a dramaturgização. É um processo que vem da perspectiva de trabalhar com os atores. A partir das improvisações, você vai levantando o roteiro, a estrutura textual e o próprio espetáculo. Chamo de processo colaborativo. A criação se dá na sala de ensaio.

Folha - O que mudou, de um espetáculo para o outro?
Araújo -
"Paraíso" foi o mais abstrato. Falava do homem diante do divino que ele não sabe direito o que é, da sensação de desligamento da dimensão divina. "Jó" tinha um questionamento nessa perspectiva, do homem que se questiona e questiona Deus, mas com um dado muito forte que era a Aids, a peste contemporânea, um problema concreto, naquele momento pior do que hoje.

Folha - E "Apocalipse", agora?
Araújo -
Em "Apocalipse", sinto que esse dado que estava na presença da Aids no "Jó" fica mais concreto ainda. É o espetáculo que mais desce para a realidade dos dias de hoje.

Folha - É o menos epifânico.
Araújo -
E o menos religioso. Em "Apocalipse", é como se existissem coisas que precisassem ser revistas, rediscutidas no plano absolutamente humano. Por exemplo, o tribunal do Juízo Final, na peça, é um lugar em que nós mesmos devemos nos julgar. O desejo de falar desta situação que a gente vive, para mim, está relacionado a ter me distanciado do país durante quase um ano e meio.

Folha - Existe uma ironia, até um humor em "Apocalipse".
Araújo -
Essa é outra diferença. Aqui a gente trabalha com o humor, com o cômico. Ainda que seja um cômico exacerbado, grotesco, você tem esse elemento.

Folha - Por quê?
Araújo -
Eu não sabia disso antes de começar os workshops. A partir do momento em que a gente começou a trabalhar em sala de ensaio, os atores trouxeram; o Fernando (Bonassi) trouxe. Eu adoro a comédia, mas, da comédia de salão, eu não gosto. Eu gosto do cômico neste trabalho. É mais ácido, você começa a rir e percebe que talvez não devesse estar rindo daquilo.

Folha - Sua mãe é religiosa. O que o levou ao tema bíblico?
Araújo -
O ponto de partida está lá mesmo, em 91, 92, no início do Teatro da Vertigem. Eu propus que a gente partisse de alguma coisa que interessasse a todos. E o tema comum a todas aquelas pessoas, naquele momento, foi a discussão do sagrado. Daí trouxe a proposta do "Paraíso Perdido" do Milton, que tinha lido na escola.

Folha - E a sua formação?
Araújo -
Do ponto de vista pessoal, tinha uma coisa que era uma tradição muito forte, religiosa. Sou mineiro. É difícil tirar isso do mineiro, essa presença da religiosidade. Passei por uma fase universitária em que a neguei inteiramente. Lembro de um ateísmo mesmo, de negar Deus, na época da PUC, USP. Mas nem a experiência de religiosidade, de infância e de adolescência, nem a experiência atéia davam mais conta. Aí veio quase que uma tentativa de acerto de contas. É como sinto.

Folha - Tem uma cena de sexo na peça. Por quê?
Araújo -
Essa cena, para mim, tem peso semelhante ao de outras. Dentro da boate, você tem a deficiente que fala a Constituição brasileira, que tem um peso semelhante. Especificamente na cena, a gente está falando dessa mecanização do sexo, dessa exploração da mídia, desse estado de degradação. Dentro de um espírito indignado.


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