São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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Aos 71, Hilda Hilst perde o rótulo "maldita", ganha "obra completa" e volta a escrever

A plenitude da obscena senhora HH

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Dia nublado. Em frente a uma lareira sem fogo, Hilda Hilst acende outro cigarro. Ao seu lado, um relógio pendurado em uma parede cor de goiaba tem os ponteiros quebrados e a inscrição: "É mais tarde do que supões".
Tudo errado. O dia deveria estar ensolarado, a lareira brilhando, o cigarro apagado. Não é tarde, como pode supor o cuco na parede. Aos 71 anos, um dos grandes nomes da literatura brasileira chega agora à plenitude.
A partir deste mês, ambicioso projeto da editora Globo descasca a carapaça de "maldita" que envolve a escritora e passa a publicar todos os 40 livros que ela lançou aqui e ali, quase em segredo.
As engrenagens já começaram a rodar. Estão chegando a livrarias de todo o país este mês as reedições da ficção "A Obscena Senhora D", de 1982, e do volume de poesia "Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão", safra 1974.
"Parece relançamento, mas é, em alguns termos, um lançamento. Até hoje Hilda não foi verdadeiramente lida", diz Alcir Pécora, professor de literatura da Unicamp e organizador da reedição.
O projeto chegou com surpresa na Casa do Sol, nome da espaçosa moradia a 11 km de Campinas onde Hilda Hilst vive com o amigo escritor Mora Fuentes e com 64 cachorros vira-latas (é isso aí).
Depois de 50 anos de trincheiras literárias, que a autora começou a cavar na exuberância dos 18 anos, quando já era elogiada até por Cecília Meireles, Hilda tinha desistido de escrever.
"Nunca achei que iam me ler mesmo", expressa a escritora, gesticulando um dos 40 cigarros Chanceller que traga por dia.
Desde 1997, a poeta (não experimente chamá-la de poetisa: "Aí eu fico raivosa. Poetisa dá idéia de moça prendada") vinha anunciando que havia encerrado a carreira. Em primeira mão, ela revela à Folha que voltou a produzir.
Encavaladas no cotidiano de leituras obsessivas, uma torre de livros abertos sobre a mesa comprova, estão as esparsas sessões de escritura do livro "O Koisa", no qual a autora balanceia poesia e prosa para discorrer sobre o caroço da azeitona de uma empada.
No tempo que resta, ela brinca com os vira-latas Cavalinha, Nenê e Mr. Toto ("ele foi educado na Inglaterra"), conversa com amigas como Lygia Fagundes Telles e investiga a imortalidade, sua crença mais arraigada. "Vou transformar minha casa na Fundação Hilda Hilst de Estudos da Alma", conta a escritora, que todas as noites antes de dormir sempre repete "Filhos da luz, luz do criador, ajude a Terra".


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