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FERNANDO GABEIRA
Encontros e desencontros amazônicos
Uma caixa de sapatos no
fundo do armário reacendeu em mim uma certa nostalgia
pela Amazônia. Nela, havia cerca
de 200 slides do encontro em Altamira, que concentrou gente de todo o mundo. Sting e Anita Roddick, fundadora da rede Body
Shop, estavam entre as personalidades que se reuniram lá, em
meio a índios e seringueiros, protestando contra a construção da
usina da Kararaó, um dos pretextos do encontro.
A repercussão do assassinato de
Chico Mendes contribuiu para
colocar a Amazônia na agenda
internacional. Um grupo de senadores americanos, entre os quais
Al Gore, visitou a região. Pareciam sinceramente interessados
em entender os problemas e contribuir para a preservação da floresta tropical.
Logo em seguida, a onda internacional de simpatia pela Amazônia enfraqueceu e foi, lentamente, acomodando-se na gaveta
das causas importantes, mas fora
de moda. A onda não passou em
vão; deixou mais coisas que uma
simples caixa de sapatos cheia de
imagens coloridas.
O Banco Mundial, por exemplo,
passou a se interessar mais pela
preservação da Amazônia e grandes ONGs internacionais instalaram-se na região. Em 2002, Fernando Henrique Cardoso formalizou, em Johannesburgo, a criação do Parque Nacional do Tumucumaque (3,8 milhões de hectares), o maior do mundo.
Alguns anos antes, tinha sido
criado o Sivam, que nos custara
US$ 1,4 bilhão e dispõe de equipamentos que, teoricamente, podem
mudar a qualidade da vigilância
sobre a região. Para completar o
quadro de potencialidade, eleito
Lula, foi escolhida ministra do
Meio Ambiente Marina Silva,
companheira de Chico Mendes,
pessoa com autoridade moral para comandar um grande acordo
pelo desenvolvimento sustentável.
Quando terminou o ano de
2003, analisando as possibilidades de trabalho na Amazônia,
procurei evitar ser esmagado com
a facilidade com que ela esmaga
quem avalia mal as dificuldades
do terreno. Selecionei o asfaltamento de um trecho da BR 1639
(Cuiabá-Santarém) como o foco
de uma tensão, situação em que
poderiam acontecer alguns desastres, mas que poderia também fazer convergir as potencialidades
de uma nova política amazônica.
Procurei me aproximar do tema: li relatórios de inspetores do
Ibama, participei de um encontro
em Brasília com os políticos da região e com representantes do governo. Duas coisas ficaram claras
para mim. No asfaltamento desse
trecho, o Brasil, potencialmente,
pode provar uma nova maneira
de construir estradas na Amazônia. E salvar a Terra do Meio,
uma imensa região, localizada
entre os rios Xingu e Tapajós, ainda preservada. São mais de 8 milhões de hectares, um território
equivalente ao tamanho da Áustria.
O conflito com os madeireiros,
no qual o governo teve de ceder,
não merece apenas condenações,
mas um conselho fraternal: a situação não evoluiria para uma
ação violenta se houvesse um mecanismo regular e confiável de negociações na área. E, sobretudo,
um mecanismo pelo qual respondesse todo o governo, com seus
quadros importantes dirigindo o
processo.
O governo subestimou a complexidade da construção de uma
estrada na Amazônia. E se perdeu um pouco na gestão de um
sistema como o Sivam, que poderia ser um instrumento decisivo
na retaguarda das negociações. O
tipo de equipamento instalado, os
potentes computadores, é usado
mais hoje no combate ao tráfico
de drogas. Mas o Sivam, quando
foi comprado, prometia vigilância ambiental.
É como se tivéssemos comprado
uma câmera digital de 22 milhões
de megapixels para tirar retratos
três por quarto. Os militares queriam uma discussão com a sociedade para que se definissem os
usos do Sivam. Foi criado um grupo dentro dessa meia centena de
grupos dirigidos por um só ministro e, até agora, nada.
É uma pena ver essas duas potencialidades ainda não plenamente usadas: a autoridade moral de Marina Silva e a capacidade técnica do Sivam.
Existem outras variáveis importantes. O Banco Mundial -ou,
pelo menos, algumas correntes-
mostra-se interessado em investir
no desenvolvimento sustentável
da Amazônia. A construção
exemplar de uma estrada, por
meio de um processo negociado,
poderia ser o trunfo histórico de
Lula para canalizar o esforço internacional.
Finalmente, é preciso admitir
que certos acordos políticos deixam grupos insatisfeitos, e isso é
perigoso numa área com baixa
proteção policial. É uma questão
delicada, mas é preciso encará-la
com coragem: a defesa da floresta
amazônica é ou não uma questão
de segurança nacional?
Nos debates que presenciei, senti que, para a maioria das pessoas, a questão básica da Amazônia é manter a soberania nacional. E, dentro dela, a ocupação da
floresta é um elemento positivo.
Acontece que, levada ao paroxismo, essa tese aceitaria a idéia de
que um deserto nacional é melhor
do que uma floresta ameaçada
por forças externas.
A caricatura é possível quando
não se define claramente a defesa
das diversidades biológicas e culturais da Amazônia como centro
de uma política de segurança.
Nesse quadro, a soberania seria
garantida moralmente pelo reconhecimento da humanidade, e
não por pequenas povoações ao
longo de uma fronteira de 11 mil
quilômetros.
Todos esses elementos deveriam
estar presentes na condução do
processo na Terra do Meio. No
início de 2005, a região já merecia
mais atenção. Os madeireiros cuidaram de chamar a imprensa à
sua maneira. Mas talvez a imprensa já estivesse por lá se houvesse um tipo de jornalismo chamado preventivo: localizar as
áreas onde a coisa vai estourar e,
quem sabe, reduzir com a luz os
estragos da explosão.
Pode ser que, no futuro, sejamos
reconhecidos como aqueles que
tiveram uma floresta grande demais para sua capacidade de desenvolvê-la com inteligência. No
momento, os dados ainda não estão todos lançados.
Com a retaguarda do Banco
Mundial, a vigilância por cima e
o governo dando as caras embaixo, as chances ficam maiores, desde que, pelo amor de Deus, não
me venham com mais um grupo
de trabalho.
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