São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

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GUILHERME WISNIK

A política da "polis"


Na Grécia Antiga, não existe relação entre o domínio privado a uma ordenação hierárquica na cidade

DE QUE MODO as relações sociais se materializam no desenho urbano? Há correspondência entre os pensamentos filosófico, religioso e político de uma sociedade e a disposição espacial de seus edifícios, ruas e praças?
Não há dúvida de que essas conexões hoje, na generalidade multiforme dos aglomerados urbanos, parecem nubladas ou esgarçadas. Elas, no entanto, têm um papel fundamental na cultura ocidental, tendo a Atenas do século 5 a.C. como paradigma. Tal é o subtexto de uma série de livros que Jonas T. S. Malaco, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, tem lançado pela Alice Foz. As edições são de uma economia espartana, e a narrativa segue uma cadência cautelosa, evitando assertivas muito teóricas e se aproximando dos conteúdos por sugestões empíricas, de modo discretamente socrático.
Ao nos debruçarmos sobre o traçado da cidade no período áureo da democracia, conduzidos por Malaco, percebemos o quanto o "logos" grego se distingue da racionalidade cartesiana e iluminista. É por isso que, no caso, a ausência de um desenho regular e integrador para a trama viária não pode ser tomado como "irracional".
Na "polis" da democracia, construída pela autonomia afirmativa de seus cidadãos, não existe um plano superior que submeta o domínio privado a uma ordenação hierárquica. Ela se estrutura pela combinação dessa trama irregular a uma série de espaços públicos representando poderes e atividades distintas: a Ágora, ao rés do chão, lugar de organizações administrativas e comércio, a Acrópole, centro religioso situado sobre um platô elevado, o Areópago, colina intermediária que abriga o conselho de anciãos, e a Pnyx, nome dado a uma colina um pouco mais alta, sede da assembléia política.
É dessa última que trata "O Lugar da Assembléia dos Cidadãos de Atenas" (R$ 25,40; 64 págs.). No livro, Malaco aprofunda o nexo vital entre espacialidade e poder, que acompanha a transformação da Pnyx. Inicialmente, ela se configurou como um anfiteatro a céu aberto, tendo a cidade como fundo para o discurso do orador. Sendo a cidade o tema permanente da assembléia, lá estava ela materializada diante de todos, pondo termo concreto à discussão.
Contudo, no final do século 5, o anfiteatro é substituído por outro, construído contra a topografia do terreno, de costas para a cidade. Mudança que coincide com a passagem da democracia para a oligarquia. Significativamente, nesse período o discurso separa-se do seu objeto, torna-se retórico, e a cidade passa a figurar mais nas "idéias" filosóficas do que na política. Os cidadãos, observa, tornam-se "espectadores de palavras", e o teatro de comédia vem retratar a cisão entre a vida pública e a vida privada, e a tendência de cada um a tratar, doravante, dos assuntos de interesse próprio.
Seu objeto de estudo é a Antigüidade. Mas o leitor atento não deixará de sentir o nexo entre "discurso" e "cidade" como uma indagação pulsante diante da situação atual. Será que essa conexão se perdeu ou está soterrada sob profundas camadas ideológicas?


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