São Paulo, sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

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Crítica/ "A Fita Branca"

Imprecisão na narrativa preserva mistério central no filme do diretor

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Não será exagero dizer que o mistério é o centro de "A Fita Branca". Já no início, o estranho acidente envolvendo o médico do vilarejo no norte da Alemanha não desmente o que virá depois, quando um arame estendido em sua passagem faz com que caia do cavalo e passe longos meses no hospital. Outros acontecimentos, ora mais graves, ora menos, reforçam essa primeira impressão.
O acidente inicial é tão estranho quanto sua origem está, claramente, no vilarejo e atinge um personagem essencial à sua sobrevivência. Há uma perversidade clara nisso tudo, que a narração "off" do filme (feita anos depois pelo antigo professor) deixa vaga. Essa sensação de vago é acentuada pelo branco e preto do filme e pela lembrança que traz dos filmes de Carl Th. Dreyer, onde a pureza remete a uma concepção alegremente religiosa do mundo. Já aqui, a pureza, se existe, está em permanente tensão com a perversidade.
Logo vemos o pastor local castigar severamente seus filhos e colocar-lhes uma fita branca, que usarão para se lembrar da necessidade de preservar a pureza. Algo está fora do lugar, pensamos. Os fatos que se sucedem: a morte de uma camponesa, um incêndio, violência bruta contra uma criança confirmam seja essa tensão entre o puro e o contaminado, seja entre o sadio e o doente, que marca o filme do austríaco Michael Haneke.
Mais do que isso, no entanto, o filme adquire certa precisão na imprecisão. Explicando: o espectador um pouco distraído pode pensar num filme mal narrado. Nada disso. Pode-se discordar de Haneke, mas ele sabe o que faz. A imprecisão visa, por um lado, a preservação do mistério (o mistério que corresponde ao escondido, como já se vira em "Caché", alguns anos atrás), e, por outro, afirmar a coletivização da culpa, digamos assim.
Pois quanto mais conhecemos o vilarejo, melhor nos enfronhamos nos ódios e nas paixões que pulsam sob a cândida aparência do local e das pessoas, como a nos lembrar de uma civilização construída sobre um pântano. Pântano do cristianismo e da repressão, mas que verga, também, sob o peso das hierarquias.
Como em outros filmes de Haneke, a realização é menos questionável do que as ideias, embora as afete. O mundo que concebe é sombrio. Um mundo de que Deus se ausentou não por ser mau, mas porque só existe, a rigor, para caucionar as perversidades do homem dessa civilização.
Esse tipo de olhar costuma ser tão ambíguo quanto a narrativa que constitui. Essa arte é denúncia da violência ou sua cúmplice laboriosa? Pessoalmente, a segunda hipótese me parece mais coerente, não somente com a narrativa, mas também com os filmes precedentes de Haneke.


A FITA BRANCA

Diretor: Michael Haneke
Produção: Alemanha/Áustria/França/Itália, 2009
Com: Christian Friedel, Leonie Benesch e Ulrich Tukur
Onde: Cine UOL Lumière e circuito
Classificação: não recomendado para menores de 16 anos
Avaliação: regular




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