São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2011

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CRÍTICA MÚSICA ERUDITA

Historiador revê relação entre músicos e poder

Em "O Triunfo da Música", Tim Blanning investiga a gradual supremacia cultural da música na modernidade

SIDNEY MOLINA
CRÍTICO DA FOLHA

Em 1840, ao chegar atrasado a um recital de piano de Franz Liszt (1811-1886), o czar Nicolau 1º (1796-1855) -que seguia a falar em voz alta dentro da sala- foi surpreendido pela interrupção súbita da obra.
Quando o déspota russo perguntou por que a música havia parado, Liszt respondeu cinicamente: "A própria música deve silenciar quando Nicolau fala".
A passagem está em "O Triunfo da Música", livro que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras.
Por meio dele, Tim Blanning, o autor -que é professor de história da Universidade de Cambridge- mostra a radical transformação na relação entre músicos e poder durante as primeiras décadas do século 19.
Passagens como esta e certa pressa na condução da narrativa sobre o aumento do prestígio dos músicos no período que vai de Platão a Haydn, no primeiro capítulo, poderiam sugerir tratar-se de mais um texto voltado ao anedotário de segunda mão.
Não é o caso.
Apesar da escrita leve -que não exige do leitor conhecimentos técnicos-, o livro defende uma tese, a saber, a da gradual supremacia cultural da música na modernidade. Essa supremacia começa a se forjar no século 18, encontra pleno desenvolvimento no romantismo e continua avassaladora até hoje.
Para fundamentar a tese, o autor parte de uma pesquisa historiográfica rigorosa e cada um dos cinco capítulos principais remete a centenas de notas, todas disponíveis no final do volume.

WAGNER E COLTRANE
O argumento de Blanning articula a conquista de prestígio por parte de Beethoven (1770-1827) e seus sucessores -como Paganini (1782-1840), Wagner (1813-1883) e o próprio Liszt- com um processo que sacraliza a música ao mesmo tempo em que a sociedade se secularizava.
Com isso, a estética da expressão -em suma, o romantismo- une Wagner com o LP "A Love Supreme", de John Coltrane (1926-1967), e a frase "Clapton is god", comum nos anos 1960.
Prestígio e propósito unem-se inextricavelmente a espaço e tecnologia, e um ponto de virada foi o concerto dos Beatles no Shea Stadium de Nova York em 1965, que abriu caminho para a transformação das arenas do rock em "catedrais da era moderna".
O autor não deixa igualmente de notar a capacidade ímpar que a música tem de se adaptar à evolução tecnológica, do saxofone ao advento das bandas de sopros, do gramofone ao rádio, da TV à guitarra Fender, do iPod ao You Tube.
Um momento virtuosístico da análise de Blanning é o rompimento com a convenção que geralmente posterga o estudo dos nacionalismos para a segunda metade do século 19.
Ele mostra com propriedade a relação carnal que existe entre música e o conceito de nação bem antes de 1789.

NACIONALISMO
A rivalidade entre Inglaterra, França, Itália e Alemanha pode ser flagrada -neste caso a partir do ponto de vista alemão- na declaração do poeta Christian Schubart (1739-1791) feita em 1775, segundo a qual "os alemães inventam a música, os italianos a vulgarizam, os franceses a plagiam e os ingleses pagam por ela". Para além das agendas nacionais e nacionalistas, outras libertações -como as raciais e sexuais- também não podem ser compreendidas sem que se considere o papel ativo exercido por suas músicas. Aqui os exemplos podem ser tão díspares como o final de "As Bodas de Fígaro", de Mozart (1756-1791), um show de David Bowie e a presença da cantora gospel Mahalia Jackson (1911-1972) ao lado de Martin Luther King (1929-1968). O triunfo da música não é, portanto, da música clássica -e nem ao menos de músicas "boas". Com critérios fortes e olho de historiador, Blanning tão só intercepta a música -alguma música- assumindo e mantendo com folga a "pole position" da cultura.

O TRIUNFO DA MÚSICA
AUTOR Tim Blanning
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Ivo Korytowski
QUANTO R$ 56 (432 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo



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