São Paulo, Sexta-feira, 12 de Fevereiro de 1999
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Toda a glória e louvor à apoteose gay


CARLOS HEITOR CONY

do Conselho Editorial
Louvemos os gays: a hora é deles. Nada mais desolador do que um gay que não goste de Carnaval, sendo a recíproca verdadeira: nada pior do que um Carnaval que não goste de gay. Ensinam os entendidos que a festa surgiu com os personagens da ""commedia dell'arte": o pierrô, o arlequim e a colombina.
Pois aí está: o gay reúne e resume em sua alma e às vezes em seu corpo as três faces dessa comédia nem sempre com arte. O gay tem a melancolia do pierrô, rosto banhado pelo luar de alvaiade. Tem a trampolinagem do arlequim, servidor de muitos amos. E tem -e como tem!- a galinhagem da colombina.
O universo não-gay distribui-se entre as três opções: há os pierrôs banhados de luar, há os arlequins que pirulitam aqui e ali e há a colombina, que não precisa de explicação. Como nos verbos impessoais (chover, por exemplo), ela não se conjuga em pessoas e modos. A colombina chove. E se for boa mesmo, faz chover.
Os gays já se encontravam no embrião do Carnaval, em forma mais ou menos fetal. De uns tempos para cá, no Carnaval de nossos dias, segundo mostram as folhas e a TV, eles estão em tudo. Para usar uma expressão usada pelos comentaristas políticos e esportivos, os gays ocuparam os espaços vazios. Espaços que se abriram pela debandada dos enrustidos, pela fuga dos não-assumidos, pelo desdém dos entediados, pela inveja dos tristes em geral.
Para muita gente, o Carnaval é tempo de fossa, até mesmo de angústia. Os gays estão saudavelmente em outra. Vivem eles na própria carne (e bota carne nisso) aquele preceito do poeta Horácio, que sem saber lançou a base ideológica de um Carnaval que se preze: ""Carpe diem quam minime credule postero". Tradução adaptada: é hoje só, amanhã não tem mais.
Essa receita, em linhas gerais, serve também para os gays, dentro ou fora do Carnaval. Pois o verdadeiro gay transforma todos os seus dias e noites num permanente Carnaval, num imenso, interminável desfile de fantasia, num labirinto de sonho sem começo nem fim -como convém a um labirinto. O gay verdadeiro faz Carnaval todos os dias.
Mas vamos com calma. Nem sempre a polícia ou o síndico do prédio deixam. Por mais espalhafatoso, por mais feérico e assanhado que seja, o gay é injustamente condenado a se reduzir a um grupo de risco, isolado da multidão, farrapo de arco-íris que fica balançando no ar, tentando colorir a paisagem e alegrar a festa com a sua própria tristeza.
É preciso então que venha o Carnaval, como a grande cheia dos rios, como as tempestades de verão, como as avalanches de neve que rompem com o frio e se desgrudam das geleiras até se derreterem nas águas do trópico.
Quando a ordem é colorir o mundo e a vida, ele, o gay, já está no devido lugar, com direito a tudo. Torna-se, então, Sua Majestade o Gay -de resto, eles adoram segurar o cetro. São deles, de longe, as melhores fantasias, é deles a mais inventiva, a mais surpreendente audácia, deles a maior alacridade, a maior pulcritude -perto deles, os homens de sexualidade normal e normal embrutecimento são aquilo que sabemos: canastrões opacos, espantalhos desanimados que nem sabem com quantos paus se faz uma canoa, como se faz uma Carmen Miranda de baile de máscara, nem o próprio baile, nem a própria máscara. E a alegria heterossexual então parece falsa, patrocinada pela Riotur, pela marca de cerveja, postiça como uma dentadura, encomendada como uma missa.
O gay, não: ele se apodera da festa, domina-a, total, tudo dá certo para ele. Tirem os gays do salão, e não haverá folia, embora a música continue tocando. Embora o doutor -como naquele samba do ""Bafo da Onça"- mande todo mundo sambar.
Não importa que o Carnaval dure tão pouco. Os gays o recortam do tempo, juntamente com as fotos que recortam das revistas que publicaram sua glória. Faturam o resto do ano em todos os sentidos: arranjam prosélitos e namorados, mas, sobretudo, arranjam um jeito de arrumar lembranças, paixões, deslumbramentos.
Se nos meses descoloridos eles exercem funções prosaicas, quadradonas, com direito a CPF, o Carnaval que passou é apenas a etapa inicial do Carnaval que virá -e nunca o tempo se torna tão relativo numa festa que etimologicamente é a despedida e o esplendor da carne.
Apesar de tudo, os gays são imortais. Querendo ou não, o Carnaval um dia acabará também para eles. Velhos, murchos, desbotados em roupas e faces, voz rouca, pele fatigada -tão fatigada quanto a alma-, eles folhearão em silêncio os seus ""books", revisitando os momentos de glória.
E quando o novo Carnaval chegar, ele não mais será arlequim nem colombina. Assumirá então, com resignada lucidez, o seu lado pierrô, rosto banhado de luar e melancolia.


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