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Toda a glória e louvor à apoteose gay
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Louvemos os gays: a hora é
deles. Nada mais desolador do
que um gay que não goste de
Carnaval, sendo a recíproca
verdadeira: nada pior do que
um Carnaval que não goste de
gay. Ensinam os entendidos
que a festa surgiu com os personagens da ""commedia dell'arte": o pierrô, o arlequim e a colombina.
Pois aí está: o gay reúne e resume em sua alma e às vezes
em seu corpo as três faces dessa
comédia nem sempre com arte.
O gay tem a melancolia do
pierrô, rosto banhado pelo luar
de alvaiade. Tem a trampolinagem do arlequim, servidor
de muitos amos. E tem -e como tem!- a galinhagem da colombina.
O universo não-gay distribui-se entre as três opções: há os
pierrôs banhados de luar, há os
arlequins que pirulitam aqui e
ali e há a colombina, que não
precisa de explicação. Como
nos verbos impessoais (chover,
por exemplo), ela não se conjuga em pessoas e modos. A colombina chove. E se for boa
mesmo, faz chover.
Os gays já se encontravam no
embrião do Carnaval, em forma mais ou menos fetal. De uns
tempos para cá, no Carnaval
de nossos dias, segundo mostram as folhas e a TV, eles estão
em tudo. Para usar uma expressão usada pelos comentaristas
políticos e esportivos, os gays
ocuparam os espaços vazios. Espaços que se abriram pela debandada dos enrustidos, pela
fuga dos não-assumidos, pelo
desdém dos entediados, pela inveja dos tristes em geral.
Para muita gente, o Carnaval
é tempo de fossa, até mesmo de
angústia. Os gays estão saudavelmente em outra. Vivem eles
na própria carne (e bota carne
nisso) aquele preceito do poeta
Horácio, que sem saber lançou
a base ideológica de um Carnaval que se preze: ""Carpe diem
quam minime credule postero".
Tradução adaptada: é hoje só,
amanhã não tem mais.
Essa receita, em linhas gerais,
serve também para os gays,
dentro ou fora do Carnaval.
Pois o verdadeiro gay transforma todos os seus dias e noites
num permanente Carnaval,
num imenso, interminável desfile de fantasia, num labirinto
de sonho sem começo nem fim
-como convém a um labirinto.
O gay verdadeiro faz Carnaval
todos os dias.
Mas vamos com calma. Nem
sempre a polícia ou o síndico do
prédio deixam. Por mais espalhafatoso, por mais feérico e assanhado que seja, o gay é injustamente condenado a se reduzir
a um grupo de risco, isolado da
multidão, farrapo de arco-íris
que fica balançando no ar, tentando colorir a paisagem e alegrar a festa com a sua própria
tristeza.
É preciso então que venha o
Carnaval, como a grande cheia
dos rios, como as tempestades
de verão, como as avalanches
de neve que rompem com o frio
e se desgrudam das geleiras até
se derreterem nas águas do trópico.
Quando a ordem é colorir o
mundo e a vida, ele, o gay, já está no devido lugar, com direito
a tudo. Torna-se, então, Sua
Majestade o Gay -de resto,
eles adoram segurar o cetro. São
deles, de longe, as melhores fantasias, é deles a mais inventiva,
a mais surpreendente audácia,
deles a maior alacridade, a
maior pulcritude -perto deles,
os homens de sexualidade normal e normal embrutecimento
são aquilo que sabemos: canastrões opacos, espantalhos desanimados que nem sabem com
quantos paus se faz uma canoa,
como se faz uma Carmen Miranda de baile de máscara, nem
o próprio baile, nem a própria
máscara. E a alegria heterossexual então parece falsa, patrocinada pela Riotur, pela marca
de cerveja, postiça como uma
dentadura, encomendada como
uma missa.
O gay, não: ele se apodera da
festa, domina-a, total, tudo dá
certo para ele. Tirem os gays do
salão, e não haverá folia, embora a música continue tocando.
Embora o doutor -como naquele samba do ""Bafo da Onça"- mande todo mundo sambar.
Não importa que o Carnaval
dure tão pouco. Os gays o recortam do tempo, juntamente com
as fotos que recortam das revistas que publicaram sua glória.
Faturam o resto do ano em todos os sentidos: arranjam prosélitos e namorados, mas, sobretudo, arranjam um jeito de
arrumar lembranças, paixões,
deslumbramentos.
Se nos meses descoloridos eles
exercem funções prosaicas,
quadradonas, com direito a
CPF, o Carnaval que passou é
apenas a etapa inicial do Carnaval que virá -e nunca o
tempo se torna tão relativo numa festa que etimologicamente
é a despedida e o esplendor da
carne.
Apesar de tudo, os gays são
imortais. Querendo ou não, o
Carnaval um dia acabará também para eles. Velhos, murchos,
desbotados em roupas e faces,
voz rouca, pele fatigada -tão
fatigada quanto a alma-, eles
folhearão em silêncio os seus
""books", revisitando os momentos de glória.
E quando o novo Carnaval
chegar, ele não mais será arlequim nem colombina. Assumirá então, com resignada lucidez, o seu lado pierrô, rosto banhado de luar e melancolia.
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