UOL


São Paulo, quarta-feira, 12 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON FREIRE/OSM

A divindade morava na Vila Belmiro; agora foi pra sala de concerto

André Sarmento/Folha Imagem
O pianista Nelson Freire durante ensaio ao lado de músicos da Orquestra Sinfônica Municipal


ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Início do "Concerto nš 2 para Piano e Orquestra" de Chopin (1810-49), anteontem, no Teatro Municipal: a música seguia rotineiramente seu caminho, sem assombros nem sustos, quando caiu o meteoro Nelson Freire, uma bola de fogo riscando o céu cinza da orquestra. Dali para a frente, as mil e tantas pessoas da platéia não tiveram mais como fugir à atração das notas, que se somavam em frases, que formavam períodos, que compunham partes segundo uma lei arcaica e nova da sensibilidade.
Só essa frase inicial do "Concerto", despencando das alturas de um ré bemol até as profundezas do fá, já valeria a noite. O melhor de assistir a um concerto é que não tem "replay", o que torna a memória de um lance assim maior do que qualquer imagem ou gravação. Falar em lance, aliás, parece muito apropriado; porque o último artista brasileiro a atingir tal consciência de sua arte foi provavelmente Pelé, no começo da década de 60. Nelson Freire, chegando ele mesmo à sua década de 60 (está com 58 anos), surge e ressurge nos palcos da cidade ungido por algum deus benevolente, ou sem paciência com nossa incapacidade de entender as coisas.
A beleza, por exemplo. Pura e simples beleza dos ornamentos e arpejos, das escalas rapidíssimas e paralelismos virtuosísticos, que Chopin escreve com toda a generosidade da adolescência. Um dos traços mais marcantes da interpretação de Nelson Freire foi justamente sua habilidade em diferenciar os planos -o que é canção, o que é cenário- nesta música onde se cruzam a geometria contrapontística de Bach e os arroubos da ópera lírica italiana. Mas diferenciar mais naturalmente do que nunca, e com enorme prazer no cenário.
Desse ponto de vista, a Orquestra Sinfônica Municipal ficou devendo; acompanhou o pianista, o que é diferente de tocar Chopin. Mas mais do que compreensível para quem já tinha passado, com bravura, pelo "Don Juan" de Richard Strauss (1864-1949) e ainda tinha pela frente "A Sagração da Primavera".
Sobre a OSM: continua bonito de ver como a orquestra está crescendo. Do ano retrasado para o passado, a mudança (podemos ser bem francos a essa altura) foi de banda para orquestra. Nesta abertura de temporada, dá gosto ver que a melhora continua em todos os naipes, inclusive os cronicamente instáveis. A orquestra está mais acesa e mais coesa. Tocou Stravinski (1882-1971) com segurança -até porque o maestro Ira Levin puxou prudentemente o freio na segunda parte.
Nessas circunstâncias, não cabe fazer reparos, embora qualquer um possa perceber que falta muito para a OSM chegar a si. Por enquanto, o simples fato de tocar esse repertório justifica as novas ambições. Nessas circunstâncias, reclamar seria torcer contra; e ninguém pode torcer contra quem está fazendo música.


Nelson Freire:     
OSM:    



Texto Anterior: Antiamericanismo se faz presente no evento
Próximo Texto: Panorâmica - Erudito: Barenboim ganha prêmio na Alemanha
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.