São Paulo, sábado, 12 de março de 2005

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LIVROS

ROMANCE

"O Menino que se Trancou na Geladeira" adota linguagem ensaística

Fábula de Fernando Bonassi ri de uma nação em frangalhos

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Ele é filho de um porteiro de anexo de uma TV estatal, que foi preso e ficou sem falar durante cinco anos, e de uma atriz de quinta especializada em papéis sacros, mas que também fez bico como "prostituta espiritualista". Os pais morreram num entrevero mal explicado. O menino, portanto, é órfão.
Ao ver sua namorada corcunda que lava louça para fora (filha de uma ex-costureira de teatro de vanguarda) ser seduzida por um japonês trambiqueiro, o menino, desconsolado, foge para o deserto, primeiro dentro de um barril de petróleo, depois, numa geladeira de última geração.
Esse é um possível esboço do enredo desta nova ficção do escritor, roteirista e dramaturgo Fernando Bonassi, colunista da Folha. Dizer enredo é um pouco complicado, pois a ação transcorre num estado acelerado e instável, e o próprio autor, dentro do livro, em seus comentários metalingüísticos, define a obra como "romance-reportagem".
O romance arremeda, pela via satírica, o gênero ensaístico. Mediante a figura do menino que se tranca na geladeira, retrata uma nação em frangalhos, muito colada à brasileira. Trata-se de uma sociedade burocratizada, estatizada, midiática, injusta e corrupta, onde sobejam as negociatas, os "reality shows" e o fosso social. Como anota o autor num parêntese, "sociedadch", em "guarany-puruníi", quer dizer "mal-estar".
Além disso, encontra-se estagnado. O romance, embora aponte uma trajetória (o menino nasce, encontra o amor, perde-o, foge para o deserto), insere-a dentro de um tempo imutável, um presente eterno onde destroços de um passado recente convivem com as novas modas já cristalizadas em sua boçalidade. Afinal, o próprio uso do termo "menino", mesmo depois de ele já ter crescido, sugere essa paralisia.
E que melhor signo para a manutenção desse estado de paralisia do que a geladeira, que deve conservar os itens ali inseridos, assim como o menino deseja preservar-se "dos conflitos exteriores"? A função da geladeira é de protegê-lo e de preservá-lo, e não propriamente de isolá-lo. Ele, afinal, é capaz de locomover-se, usando-a como veículo.
O autor compara-o a um super-herói, com seu "equipamento muito específico", e de fato sua gênese lembra a de personagens histórico-lendários, como Buda, que viveu seis anos em contemplação, ou santo Antão, que fugiu ao deserto, renegando a miséria da contingência humana.
Mas, ao contrário do santo, açodado pelas tentações mundanas na forma de sonhos, o menino trouxe o mundo consigo ao refrigério e continuou travando contato com ele de dentro de seu equipamento protetor. Não busca ascese nem iluminação. É um anti-herói que visa apenas a si próprio, um macunaíma engessado em ferro, plástico e acrílico.
Sátira feroz à fase atual da cena capitalista (se pegarmos aí um naco de tempo de 20 ou 30 anos), "O Menino..." tem uma alucinante estrutura narrativa e de frase. Os fatos, conceitos e sentenças são emendados uns nos outros, muitas vezes com alterações fonêmico-semânticas (saberes "zen-nudistas", os "Estados Suínos" etc), resultando numa mixórdia lingüística e em unidades de idéia muitas vezes difíceis de acompanhar, mas que refletem muito bem o estado caótico da nossa atual civilização.
Desse mundo cão em que o deserto não funciona mais como espaço de renovação, mas de mero regurgitamento dos males de uma sociedade inchada de contradições, só o amor pode -ou não- oferecer uma possibilidade de escape. Só lendo esta feérica fábula pós-apocalíptica de Bonassi para descobrir.


O Menino que se Trancou na Geladeira
   
Autor: Fernando Bonassi
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 42,90 (224 págs.)


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