São Paulo, segunda-feira, 12 de março de 2007

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NELSON ASCHER

A política do aquecimento global


A visão de mundo da militância ecológica é regressiva, mística, medieval, paleolítica

TODOS OS anos uma quantidade de neve se deposita em lugares perpetuamente congelados como a Groenlândia. A neve se endurece e se transforma numa nova camada de gelo sobre a qual, entra ano, sai ano, outras semelhantes se sobrepõem. Com sondas, como as utilizadas na prospecção do petróleo, mas especialmente adaptadas, cientistas conseguiram retirar cilindros contínuos de gelo, com quilômetros de comprimento. Analisando a espessura de cada camada anualmente depositada, sua textura e composição, eles deduziram como era o clima do planeta seja há algumas centenas de anos, seja há muitos milhares.
O gelo não é o único fenômeno periódico que, desde que adequadamente observado e esmiuçado, revela detalhes importantes do passado terrestre. O mesmo se aplica a árvores milenares ou às sucessivas camadas de material orgânico que vão se depositando no fundo dos oceanos. Mais importante, porém, do que esses fenômenos é a combinação de todos, que permite calibrar com precisão as conclusões derivadas do exame de cada qual. Soma-se, ademais, à engenhosidade a experiência que possibilita a correção de erros anteriores.
Numa profundidade temporal de centenas de milhares ou de milhões de anos, as oscilações climáticas da Terra não são mais um mistério e é graças ao quadro que já temos delas que muitas das informações obtidas pela paleontologia, arqueologia e, cada vez mais, pelo estudo genético comparativo dos grupos humanos adquirem sentido, pois se torna possível situar tal ou qual fase da evolução da espécie num meio ambiente previamente deduzido. É difícil, portanto, para alguém que vê nisso tudo respostas brilhantes a perguntas que pairavam no ar, pôr em dúvida as projeções futuras dos climatologistas.
Afinal, a ciência envolvida é complexíssima não apenas para os leigos interessados, mas inclusive para os peritos de outras áreas. E, ainda assim, convém aos leigos colocar perguntas mais informadas e também interferir mais no processo decisório que vem depois da ciência. Por quê? Porque a questão do aquecimento global em seu conjunto e nas suas conseqüências transcende a ciência. Ela é política nos seus menores detalhes.
Digamos que o ritmo do aquecimento seja um fato inconteste e, mais, que sua principal razão seja o uso de combustíveis fósseis pelo ser humano. Digamos que a ciência e os modelos utilizados sejam muito melhores do que aqueles que, poucas décadas atrás, prometiam-nos uma nova glaciação ou a exaustão dos recursos naturais. Mesmo assim, a resposta à pergunta "o que fazer agora?" não pertence somente aos cientistas nem pode ser delegada a organizações internacionais ou transnacionais, como a ONU, que não contam com nenhuma medida de legitimidade democrática. Entregar-lhes a solução de qualquer problema rende em geral dois resultados paralelos, ambos negativos, a saber, a perpetuação do problema posto e a criação de um novo, que é o fortalecimento dessas instituições em detrimento das raras ainda democráticas que existem no âmbito de uma minoria de países.
Não é deste modo, contudo, que as inúmeras ONGs (muitas direta ou indiretamente subsidiadas por verbas de tais ou quais governos) e toda a militância verde e ecológica pensam esse assunto. Elas parecem entrever nele uma espécie de oportunidade de ouro não para resolver dilemas concretos, mas para impor-nos sua visão de mundo. Não é mistério que essa é regressiva, mística, medieval, quando não paleolítica, que ela odeia a tecnologia e a ciência (salvo os ramos que confirmem suas profecias) e, sobretudo, acha nossa civilização e modo de vida absolutamente pecaminosos. A ira sagrada que move tais militantes têm menos a ver com o bem-estar geral do maior número de pessoas do que com o fogo do inferno que deveria abrasar uma civilização que lhes contradiz diariamente os dogmas, uma civilização que garante mais vida a mais gente devido ao uso inteligente de outras fontes de energia além das tradicionais, isto é, a musculatura animal e humana.
Vale a pena acrescentar que o militante médio sabe tão pouco da ciência necessária quanto nós, os leigos em geral. Se não temos como julgar diretamente a qualidade da ciência e do aparente consenso que, por enquanto, garantem-nos que há um aquecimento global ocasionado por nossa espécie, podemos, como aliás fazem os cientistas para descobrir o clima de épocas e lugares onde não estavam, tentar deduzir indiretamente que intenções acompanham cada solução proposta, e não só podemos como precisamos avaliar politicamente seu impacto sobre nosso modo de vida.


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