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MARCELO COELHO
Os despertos e os ausentes
As coisas hoje parecem feitas para nos deixar desatentos; no barulho, não ouvimos nada
DISTÚRBIOS DE sono, déficit de
atenção, hiperatividade:
muita criança inteligente sofre com isso, e ainda bem que hoje
essas coisas pelo menos se diagnosticam. Sem informação sobre o assunto, era automático nos professores de antigamente acusar o aluno
de pura indisciplina ou de burrice.
Mas talvez exista um bocado de
verdade no que dizia uma grande
educadora de outros tempos a respeito das virtudes da energia intelectual, da entrega e da atenção.
Trata-se de Nadia Boulanger
(1887-1979), talvez a mais importante professora de composição erudita
do século 20. Dezenas de músicos
famosos passaram por ela: de Daniel
Barenboim a Astor Piazzolla, de
Aaron Copland a Elliott Carter, de
Igor Markevitch a Burt Bacharach,
passando por Camargo Guarnieri e
Egberto Gismonti, seu ensino ("draconiano", como ela própria dizia)
formou gerações de compositores e
de intérpretes.
Saiu agora em DVD um documentário já antigo, em preto-e-branco,
feito por Bruno Monsaingeon quando "Mademoiselle", como a chamavam, completou 90 anos, durinha e
lúcida como ela só.
Músicos de toda parte do mundo
ainda faziam fila para assistir a suas
aulas. Como selecioná-los? Sem dúvida, o talento natural era a primeira
coisa a avaliar. Igualmente importante, contudo, era a capacidade de
concentração.
Tudo se torna absolutamente inútil, diz Boulanger, quando de uma
semana para a outra o aluno se esquece do que aprendeu... Ela conta o
exemplo de Stravinsky, seu grande
amigo: mesmo quando estava jogando cartas, ele se entregava completamente ao que fazia.
Nessa hora, o filme mostra uma
foto de Stravinsky com o baralho na
mão. O compositor russo, meio de
perfil, grandes óculos de massa preta, raros cabelos grudados com fixador em volta da orelha, encara o jogo
como se quisesse hipnotizar as próprias cartas.
Sente-se que Stravinsky está integralmente ali. É ele mesmo, ele próprio, inteiro, quem vive aquele momento. Imagino que fosse assim o
tempo todo.
Nesse sentido, Boulanger acaba
usando um termo antiquado. Diz
que a atenção é "um traço de caráter". Entende que um grande músico possa ter personalidade odiosa;
"caráter", em seu vocabulário, não
parece ter muito a ver com isso.
Fiquei pensando se o termo não
significaria, antes de mais nada, uma
capacidade de "estar presente", coisa que não se resume apenas ao aspecto moral. Sem dúvida, "ausentar-se" de uma situação difícil é sinal,
não digo de falta, mas de fraqueza
de caráter.
Mas o que dizer de alguém que,
por exemplo, se ausenta de sua própria vocação, e que mal responde
aos apelos de sua própria inteligência, de seu próprio dom? Que professor poderia ajudar alguém assim?
Felizmente, Boulanger não menospreza demais esse tipo de pessoas. São, diz ela, os "adormecidos".
Cumprirão a seu modo, e quem sabe
com grandeza, o seu destino pessoal.
Mas o destino dessa professora era
tratar dos que estão despertos.
"Dom" é outra palavra que Nadia
Boulanger utiliza com plena convicção, sem relativismo nem correção
política. A idéia adquire, em suas frases, ressonância quase religiosa.
Curioso, afinal, que outro sinônimo de "dom" seja "presente". É como se, num artista como Stravinsky,
por exemplo, estivesse em curso
uma troca permanente entre seu
trabalho e sua natureza: os presentes recebidos se retribuem com
"presença", os dons se respondem
com novas doações.
Stravinsky dedicou uma peça a
Nadia Boulanger, chamando-a de
"aquela que ouve tudo". De novo, é a
atenção. No filme, o compositor
Leonard Bernstein confirma essa
qualidade de Boulanger. Tocou para
ela os primeiros acordes, complicadíssimos, de uma peça para canto
e piano. Meio compasso depois, a
mão esquerda estourava um si bemol no grave.
"Não, não!", pulou a professora.
"Ça ne va pas!" Aos 58 anos, Bernstein não precisava de aulas de ninguém; era só amigo de "Mademoiselle". "Mas eu me senti um aluno de
primeiro ano." A professora tinha
escutado uma repetição banal no
meio da sofisticada barafunda
bernsteiniana.
Voltando aos distúrbios de atenção. Podem ter causas neurológicas
reais. Não só entre as crianças, contudo, as coisas hoje em dia parecem
feitas para nos deixar o tempo todo
desatentos. No meio do barulho, não
ouvimos coisa nenhuma, nem sequer a nós mesmos.
Fico por aqui, não sem observar
que, se o leitor chegou até o fim do
artigo, já temos, ambos, de comemorar nossa atenção.
coelhofsp@uol.com.br
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