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Crítica/"A Criação Imperfeita"
Em busca de nossas origens cósmicas
ROGERIO ROSENFELD
ESPECIAL PARA A FOLHA
A beleza está nos olhos de
quem a observa. Sua definição é
subjetiva. Inconscientemente,
no entanto, para a maioria das
pessoas, a beleza de um objeto
está relacionada ao seu grau de
simetria. Um diamante tem
mais valor caso não possua nenhum defeito que atrapalhe
sua forma simétrica. Poucos
encontram beleza nas figuras
cubistas pintadas por Picasso.
Muitas teorias da física também são guiadas por conceitos
de simetria, que podem ser descritos matematicamente. Gostamos de acreditar que as leis
do Universo obedecem a simetrias observadas na natureza.
Porém, após anos de avanços
em pesquisas e medições precisas, sabemos que existem pequenas imperfeições em algumas das simetrias que achávamos serem fundamentais. Mais
ainda, essas imperfeições são
essenciais para o aparecimento
de vida no Universo e, talvez, do
próprio Universo. Somos frutos das imperfeições, ou assimetrias, das leis da natureza.
A origem do Universo e a origem da vida sob essa perspectiva são os grandes temas abordados de forma magistral em
"A Criação Imperfeita", de
Marcelo Gleiser. O livro explora questões fundamentais da física e da biologia, passando por
discussões sobre paralelos entre a ciência e a religião e pela
conversão pessoal experimentada pelo autor, um ex-reducionista convicto que agora questiona a existência de uma unicidade final das leis da natureza.
Com uma linguagem acessível, mas precisa, Gleiser discorre nas primeiras três partes sobre a busca por uma teoria unificada que descreva todo o Universo e sua evolução. Ele chama
essa teoria de "Código Oculto
da Natureza" ou "Teoria Final",
sonho perseguido desde os filósofos gregos da Antiguidade até
os físicos atuais que trabalham
na teoria de supercordas.
O livro argumenta que essa
teoria pode ser não apenas uma
impossibilidade mas também
desnecessária, visto que não
poderia ser testada experimentalmente com precisão absoluta. E, como reiterado várias vezes no livro, "só sabemos o que
medimos". Talvez a resposta
definitiva para o Universo, a vida e tudo o mais seja mesmo
"42" -piada de "O Mochileiro
das Galáxias", de Douglas
Adams. Ou seja, pode não existir uma resposta adequada.
No entanto, como Gleiser escreve, "O brilho da ciência, a
sua mágica, não diminuirá se
uma Teoria Final não existir".
A jornada é mais importante
que o destino final. Afinal, durante essa busca através dos séculos, modelos cada vez mais
precisos para entender a natureza foram sendo desenvolvidos até chegar ao chamado Modelo Padrão das Interações
Fundamentais, que descreve
quase todos os fenômenos medidos até hoje.
Quase todos, porque sabemos que ainda não entendemos do que é feito 96% do Universo! Novos experimentos podem revolucionar o conhecimento sobre o que chamamos
de matéria escura e energia escura, essas componentes do
Universo cuja natureza ainda
nos é desconhecida.
As duas últimas partes do livro são dedicadas ao estudo do
efeito de assimetrias no surgimento e desenvolvimento da
vida. Questões filosóficas profundas, como a busca por uma
razão de nossa existência, são
eloquentemente discutidas.
Será que fazemos parte de
um grande e desconhecido plano cósmico? Marcelo defende
que nossa existência é consequência de sutis imperfeições,
assimetrias aleatórias ocorridas na evolução do Universo.
Somos frutos de um "acidente
raro, precioso e frágil".
Mas não devemos nos sentir
insignificantes. Marcelo propõe que, pelo simples fato de
existirmos e refletirmos sobre
o Universo, tornamo-nos uma
espécie de "consciência" do
cosmo. Ele denomina esse conceito de "humanocentrismo".
Uma mensagem do livro é que
devemos coletivamente tomar
cuidados extremos para não
destruir nossa frágil existência.
Gleiser consegue uma proeza: escrever um livro sobre
ciência com alma. Alma no sentido de humanidade e sensibilidade. É leitura obrigatória.
ROGERIO ROSENFELD é diretor do Instituto de
Física Teórica da Unesp
A CRIAÇÃO IMPERFEITA
Autor: Marcelo Gleiser
Editora: Record
Quanto: R$ 49,90 (366 págs.)
Avaliação: ótimo
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