São Paulo, sexta-feira, 12 de março de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Tancredo: uma entrevista antiga


Gosto de lembrar de Tancredo Neves assim, um pensamento liberal e despojado de ilusões


ESTAMOS COMEMORANDO o centenário de nascimento de Tancredo Neves, um dos nomes mais queridos e expressivos de nosso período republicano, só comparável, e quase sempre com vantagem para ele, com os grandes vultos de nosso passado monárquico.
Para homenageá-lo, transcreverei um artigo que publiquei após uma entrevista com ele, quando ainda vivíamos a esperança de uma eleição direta. Gosto de lembrar de Tancredo Neves assim, um pensamento liberal e autenticamente democrático, despojado de ilusões, mas com aquilo que foi chamado de "decisão de fortes".
"Era um fim de semana sem sol e Tancredo Neves ficara no Rio, teria compromisso cedo na segunda-feira, parece que uma missa de sétimo dia. A situação estava bastante confusa para os lados dele. Governador de Minas, ainda com um longo período pela frente, ele se engajara na campanha das Diretas.
Ulysses Guimarães, em lance até hoje inexplicado, declarara-se candidato pelo PMDB e as previsões davam a candidatura de Maluf como imbatível no Colégio Eleitoral.
Tancredo tinha pudor em se lançar candidato, uma atitude dessas desarrumaria todo o seu perfil construído em 50 anos de vida pública. Apesar de seus controles, sabiamente adestrados em secular mineirice, ele se impacientava, sentia que a campanha pelas diretas não modificaria o quadro legal, servindo apenas como grande detonador emocional.
Tinha a certeza de que o jogo seria travado mesmo no Colégio Eleitoral, e que mais cedo ou mais tarde a união das forças do centro fatalmente passaria por seu nome.
Mas isso precisava ser colocado imediatamente na mesa das negociações, pois enquanto o povo vivia o "impossible dream" do voto direto, o candidato Maluf chegava a contabilizar a seu favor mais de 300 votos de eleitores que diretamente escolheriam um presidente indireto.
Foi nesse quadro que ouvi dele uma espécie de desabafo, mais um pensamento em voz alta do que uma intenção assumida. Reproduzo as suas palavras mais pelo sentido que nelas captei, não exatamente pelas frases proferidas: "Se o Congresso derrubar a emenda Dante de Oliveira, eu não consulto mais ninguém e me lanço candidato. Não para ganhar, sei que perderei logo de saída mais de dois anos de mandato no governo de Minas e não terei chance de derrotar Paulo Maluf no Colégio Eleitoral.
Mas não importa. É preciso que alguém faça uma grande pregação nacional em favor de valores esquecidos. A salvação do Brasil, como nação, depende antes de mais nada de uma ideia nacional, de um pacto nacional [tenho certeza de que não falou em pacto social, mas em pacto nacional], que reúna as forças do centro, divididas desde os inícios da campanha republicana.
Sei que não é isso que a classe política deseja, mas é o que desejo. Veja o caso do Rui Barbosa. Ele perdeu a luta eleitoral, mas quem se lembra de seu antagonista? Pelo que sei, é hoje apenas um nome de subúrbio no Rio. Não deixou uma ideia, uma obra, um fato. E Rui, a pregação de Rui integra o nosso patrimônio político e moral.
Não darei uma de Dom Quixote, estou numa fase da vida em que não tenho direito a mais ilusões. Mas sinto que esta é a hora, a hora de uma grande ideia a ser lançada. Lutando por essa ideia, tudo valerá a pena, até mesmo eu não tomar posse na Presidência da República".
Procurei reconstituir honestamente as palavras do dr. Tancredo, mas até onde a memória humana se permite, creio que apenas a parte final foi guardada textualmente por mim. Lembro que olhei bem para ele e notei sua determinação "de não tomar posse na Presidência" desde que conseguisse obra maior e legado mais duradouro.
Esta crônica deveria ter outro tom, mais humano e pessoal. Mas, na emoção dos últimos acontecimentos, acho de minha obrigação lembrar a fragilidade de um forte, fragilidade romântica que talvez não ficasse bem num político de sua estatura.
Carlyle escreveu o melhor trabalho sobre a personalidade dos heróis: nesse sentido carlyliano, podemos ver em Tancredo Neves um tipo de herói cujas fraquezas são apenas os momentos incompreensíveis de uma grandeza que só a história saberá medir.


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