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CRÍTICA
A escrita, sem paixão, é apenas um vazio
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Algumas cenas de "Shakespeare
Apaixonado" resumem muito
bem o espírito do filme. Numa delas, William Shakespeare (Joseph
Fiennes) está numa taberna, precisando entregar uma peça e sem
idéia para executá-la. Ao seu lado,
no balcão, um colega mais velho e
mais célebre, Christopher Marlowe (Rupert Everett), oferece-lhe
um trago e uma idéia: e se fosse a
história de um jovem apaixonado;
e se os pais da garota fossem inimigos mortais dos pais do rapaz?
Em outro momento, o empresário Henslowe (Geoffrey Rush) explica a um leigo como as coisas se
passam no teatro. Diz que às vezes
tudo sai dos eixos, parece que tudo
vai dar errado. Mas, misteriosamente, as coisas se arranjam, da
melhor forma e na hora certa.
Essas duas cenas, laterais ao entrecho do filme, são decisivas para
nos situar em seu tema: o processo
de criação, suas dores e alegrias.
É claro que nesse processo o
principal será a musa, pois o que o
filme de John Madden nos mostra
no princípio é um Shakespeare
sem inspiração. Tudo está em sua
cabeça, mas falta aquela que, por
existir, estar próxima, faz com que
a idéia se materialize, transformando-se em texto e espetáculo.
Essa personagem surge na pessoa de Viola (Gwyneth Paltrow),
jovem filha de um burguês enriquecido, mas prometida a um nobre pobre e de nariz empinado.
Com isso, o que vemos é o nascimento de "Romeu e Julieta", ao
mesmo tempo em que Shakespeare em pessoa está envolvido em um
drama tipo "Romeu e Julieta" (que
os roteiristas Marc Norman e Tom
Stoppard tiveram o bom-senso de
não fazer idêntico, embora, com
muita felicidade, colocassem o casal Shakespeare/Viola em cena, representando a cena final da peça).
Para voltar ao início. A primeira
cena citada, entre Marlowe e Shakespeare, capta muito bem a camaradagem que envolve a criação
(da qual, com certeza, não estão
isentas seja a influência, seja certa
rivalidade) e mostra em termos
prosaicos como uma grande idéia
pode nascer do acaso.
Passemos pelo fato de o filme
apresentar uma versão finamente
irônica (mas ao mesmo tempo trágica) do assassinato de Marlowe e
voltemos às musas. desfrutar
Os responsáveis pelo filme dizem
que Viola não existiu, mas poderia
ter existido. Embora seja importante deixar isso claro, o essencial
no caso é a idéia que o filme desenvolve: a de que não existe criação
puramente abstrata; tudo que se
escreve tem uma relação com a experiência pessoal do autor, embora a criação não consista no relato
fiel do que aconteceu, mas em um
processo de transformação.
Assim, muito mais do que mostrar uma hipotética paixão de Shakespeare, o que este filme oferece é
a oportunidade de ver a gênese
(imaginária) de uma grande peça.
O fato de os acontecimentos relatados serem fictícios não desvaloriza o espetáculo. Pelo contrário,
estamos diante de um espetáculo
na tradição ilusionista, em que o
caráter ficcional de certa forma se
esconde sob o cuidado no retratar
uma época, no encontrar indumentárias apropriadas etc.
Ao mesmo tempo, no entanto,
esse espetáculo como que se desdobra e passa a refletir sobre si
mesmo. Evidentemente, não é a
primeira vez que isso acontece na
história. Mas fazia falta, havia um
bom tempo, filmes de grande porte -e bem comportados, não como os trabalhos de um John Woo,
por exemplo- que tomassem essa
distância em relação a si mesmos.
Talvez "Shakespeare" não seja
um filme para ficar na história, talvez não tenha a ousadia de um
"Além da Linha Vermelha", digamos, mas a desenvoltura com que
aborda seu tema -desenvoltura
da qual advém o caráter cômico,
inclusive- o credenciam como
trabalho que agrada não apenas
por aspectos necessários, embora
contingentes (boas interpretações,
bons cenários), mas pela maneira
como atrai o olhar do espectador,
fazendo uso mais da inteligência e
da imaginação do que dos efeitos.
Filme: Shakespeare Apaixonado
Produção: EUA/Inglaterra, 1998
Direção: John Madden
Com: Joseph Fiennes, Gwyneth Paltrow,
Judi Dench
Quando: a partir de hoje, nos cines Ipiranga
1, Astor, Center Iguatemi 3 e circuito
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