São Paulo, Sexta-feira, 12 de Março de 1999
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CRÍTICA
A escrita, sem paixão, é apenas um vazio

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Algumas cenas de "Shakespeare Apaixonado" resumem muito bem o espírito do filme. Numa delas, William Shakespeare (Joseph Fiennes) está numa taberna, precisando entregar uma peça e sem idéia para executá-la. Ao seu lado, no balcão, um colega mais velho e mais célebre, Christopher Marlowe (Rupert Everett), oferece-lhe um trago e uma idéia: e se fosse a história de um jovem apaixonado; e se os pais da garota fossem inimigos mortais dos pais do rapaz?
Em outro momento, o empresário Henslowe (Geoffrey Rush) explica a um leigo como as coisas se passam no teatro. Diz que às vezes tudo sai dos eixos, parece que tudo vai dar errado. Mas, misteriosamente, as coisas se arranjam, da melhor forma e na hora certa.
Essas duas cenas, laterais ao entrecho do filme, são decisivas para nos situar em seu tema: o processo de criação, suas dores e alegrias.
É claro que nesse processo o principal será a musa, pois o que o filme de John Madden nos mostra no princípio é um Shakespeare sem inspiração. Tudo está em sua cabeça, mas falta aquela que, por existir, estar próxima, faz com que a idéia se materialize, transformando-se em texto e espetáculo.
Essa personagem surge na pessoa de Viola (Gwyneth Paltrow), jovem filha de um burguês enriquecido, mas prometida a um nobre pobre e de nariz empinado.
Com isso, o que vemos é o nascimento de "Romeu e Julieta", ao mesmo tempo em que Shakespeare em pessoa está envolvido em um drama tipo "Romeu e Julieta" (que os roteiristas Marc Norman e Tom Stoppard tiveram o bom-senso de não fazer idêntico, embora, com muita felicidade, colocassem o casal Shakespeare/Viola em cena, representando a cena final da peça).
Para voltar ao início. A primeira cena citada, entre Marlowe e Shakespeare, capta muito bem a camaradagem que envolve a criação (da qual, com certeza, não estão isentas seja a influência, seja certa rivalidade) e mostra em termos prosaicos como uma grande idéia pode nascer do acaso.
Passemos pelo fato de o filme apresentar uma versão finamente irônica (mas ao mesmo tempo trágica) do assassinato de Marlowe e voltemos às musas. desfrutar
Os responsáveis pelo filme dizem que Viola não existiu, mas poderia ter existido. Embora seja importante deixar isso claro, o essencial no caso é a idéia que o filme desenvolve: a de que não existe criação puramente abstrata; tudo que se escreve tem uma relação com a experiência pessoal do autor, embora a criação não consista no relato fiel do que aconteceu, mas em um processo de transformação.
Assim, muito mais do que mostrar uma hipotética paixão de Shakespeare, o que este filme oferece é a oportunidade de ver a gênese (imaginária) de uma grande peça.
O fato de os acontecimentos relatados serem fictícios não desvaloriza o espetáculo. Pelo contrário, estamos diante de um espetáculo na tradição ilusionista, em que o caráter ficcional de certa forma se esconde sob o cuidado no retratar uma época, no encontrar indumentárias apropriadas etc.
Ao mesmo tempo, no entanto, esse espetáculo como que se desdobra e passa a refletir sobre si mesmo. Evidentemente, não é a primeira vez que isso acontece na história. Mas fazia falta, havia um bom tempo, filmes de grande porte -e bem comportados, não como os trabalhos de um John Woo, por exemplo- que tomassem essa distância em relação a si mesmos.
Talvez "Shakespeare" não seja um filme para ficar na história, talvez não tenha a ousadia de um "Além da Linha Vermelha", digamos, mas a desenvoltura com que aborda seu tema -desenvoltura da qual advém o caráter cômico, inclusive- o credenciam como trabalho que agrada não apenas por aspectos necessários, embora contingentes (boas interpretações, bons cenários), mas pela maneira como atrai o olhar do espectador, fazendo uso mais da inteligência e da imaginação do que dos efeitos.

Filme: Shakespeare Apaixonado Produção: EUA/Inglaterra, 1998 Direção: John Madden Com: Joseph Fiennes, Gwyneth Paltrow, Judi Dench Quando: a partir de hoje, nos cines Ipiranga 1, Astor, Center Iguatemi 3 e circuito

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