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São Paulo, segunda-feira, 12 de maio de 2003

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NELSON ASCHER

As palavras da tribo

Não se sabe quando nossa espécie começou a falar, qual o momento pré-histórico em que nossos ou, mais provavelmente, nossas ancestrais remotas, coordenando instrumentos tão díspares como o fole do pulmão, a flauta da laringe, as cordas vocais, a caixa de ressonância da boca, a palheta da língua e, eventualmente, a percussão dos dentes, alcançaram, sob a regência sobretudo da área de broca no lado esquerdo do cérebro, a improvável sincronização sonora que chamamos de linguagem articulada.
Ignora-se até mesmo quando foi que deixamos de ser algo diferente e nos convertemos em nós mesmos, uma espécie tão uniforme e homogênea que, não fosse por sua potencialmente ilimitada variedade cultural, já teria há muito perecido de aborrecimento. E, para que se constate quão iguais somos entre nós, basta contrastar o ser humano com seu proverbial melhor amigo, um animal que não é mais antigo do que nós: comparadas às diferenças entre um yorkshire e um são-bernardo, as que existem entre um hotentote e um esquimó ou entre um pigmeu e um papua são, se tanto, ornamentais.
Dizem os paleontólogos que aparecemos como criaturas distintas algures no sudeste africano entre 100 mil e 200 mil anos atrás. Para entender nossa evolução, a ciência requer vestígios materiais e, de nossos restos mortais, os únicos com alguma chance de chegarem aos laboratórios da posteridade são os ossos. Isso, excluindo quase toda a orquestra fonadora, torna a linguagem difícil de ser datada e divide as opiniões entre os que vêem na loquacidade uma marca de origem e aqueles segundo os quais ela coincide com a explosão criativa do paleolítico.
Independentemente do veredicto final, não há nenhuma boa razão para supor que a arte verbal não tenha acompanhado a linguagem articulada desde seus primórdios. E, se, conforme sustentaram pensadores, como o italiano setecentista Giambattista Vico ou o helenista de Harvard Eric Havelock, for verdade que a prosa propriamente dita vincula-se à invenção da escrita, a forma primeira dessa arte é a poesia.
Como eram, então, os poemas compostos há 50 mil ou há 100 mil anos? Embora o material com que haviam sido feitos, ondas sonoras propagadas pelo ar, seja ainda mais perecível do que os neurônios nos quais foram efemeramente registrados, não é necessariamente impossível recuperar não tanto os poemas individuais quanto, por assim dizer, sua essência.
Uma das maneiras de fazê-lo é por meio da antropologia que, sob nomes diversos, o Ocidente desenvolve desde a era das descobertas. Investigando sociedades isoladas que hipoteticamente se assemelham às arcaicas, resgatando e preservando seus mitos, orações, epopéias e canções, seus praticantes disponibilizaram-nos um amplíssimo leque de possibilidades criativas através do tempo e do espaço.
Tais investigações, entre cujos pioneiros estavam os românticos alemães, instigaram, no século passado, não somente antologias importantes mas também toda uma tendência da modernidade que lançou mão dos recursos redescobertos de outras épocas para produzir obras novas. "Cobra Norato", de Raul Bopp, "Macunaíma", de Mário de Andrade, e "Meu Tio, o Iauaretê", de João Guimarães Rosa, são seus mais célebres exemplos brasileiros, e essas obras, aliás, ilustram um outro instrumento que torna possível nos aproximarmos das composições desaparecidas: a imaginação disciplinada. Por que, afinal, existiria algo que nossos antepassados pudessem fazer, pensar, compor verbalmente e nós não? É um nexo assim que Mallarmé deveria ter em mente quando falou em "dar um sentido mais puro às palavras da tribo".
No entanto, tendo em vista hoje em dia a extinção do costume de se reunir diante da caverna e ao redor da fogueira para ouvir o bardo, aedo ou rapsodo local repetir a antiga genealogia recém-inventada do cacique, recordar a profusão de cabeças decepadas que os guerreiros de outrora empalavam na ponta das lanças ou contar como o mundo foi chocado por um coiote hermafrodita depois de ter sido desovado pela eterna avestruz cósmica na bolsa de um gigantesco gambá marsupial, seria lícito suspeitar de uma espécie de descontinuidade radical nos hábitos estéticos da espécie.
Quem, em sã consciência, vai se dar ao trabalho de articular meticulosamente palavras no papel se tanto faz quais interjeições apoiadas no palco por incontáveis megawatts obtêm mais atenção e muito mais fãs ou se 700 páginas desconjuntadas e repetitivas sobre sexo e dinheiro em inglês ou sobre sexo e tédio existencial em francês prometem polpudos direitos autorais e talvez acabem sendo filmadas?
O poeta alemão Hans Magnus Enzensberger, assegurando que em qualquer país do mundo, seja na Islândia, com seus menos de 300 mil habitantes, seja na China, com cerca de 1,3 bilhão, o número de leitores de poesia é aproximadamente o mesmo, uns 1.200, chama essa cifra, coincidentemente, de "Constante de Enzensberger" e explica o "efeito aspirina" de acordo com o qual a poesia seria um concentrado que, devidamente dissolvido, se manifesta em todas as formas de expressão, do rock à telenovela, passando pela publicidade. Ele poderia ter acrescentado que o fato de haver quem insista em escrever, às vezes bem, para essa soma otimista de leitores demonstra que tal propensão nada tem de racional, pois, instintiva e atávica, sua única esperança de cura é a engenharia genética.



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