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NELSON ASCHER
As palavras da tribo
Não se sabe quando nossa
espécie começou a falar,
qual o momento pré-histórico em
que nossos ou, mais provavelmente, nossas ancestrais remotas,
coordenando instrumentos tão
díspares como o fole do pulmão, a
flauta da laringe, as cordas vocais, a caixa de ressonância da
boca, a palheta da língua e, eventualmente, a percussão dos dentes, alcançaram, sob a regência
sobretudo da área de broca no lado esquerdo do cérebro, a improvável sincronização sonora que
chamamos de linguagem articulada.
Ignora-se até mesmo quando
foi que deixamos de ser algo diferente e nos convertemos em nós
mesmos, uma espécie tão uniforme e homogênea que, não fosse
por sua potencialmente ilimitada
variedade cultural, já teria há
muito perecido de aborrecimento.
E, para que se constate quão
iguais somos entre nós, basta contrastar o ser humano com seu
proverbial melhor amigo, um
animal que não é mais antigo do
que nós: comparadas às diferenças entre um yorkshire e um são-bernardo, as que existem entre
um hotentote e um esquimó ou
entre um pigmeu e um papua são,
se tanto, ornamentais.
Dizem os paleontólogos que
aparecemos como criaturas distintas algures no sudeste africano
entre 100 mil e 200 mil anos atrás.
Para entender nossa evolução, a
ciência requer vestígios materiais
e, de nossos restos mortais, os únicos com alguma chance de chegarem aos laboratórios da posteridade são os ossos. Isso, excluindo
quase toda a orquestra fonadora,
torna a linguagem difícil de ser
datada e divide as opiniões entre
os que vêem na loquacidade uma
marca de origem e aqueles segundo os quais ela coincide com a explosão criativa do paleolítico.
Independentemente do veredicto final, não há nenhuma boa razão para supor que a arte verbal
não tenha acompanhado a linguagem articulada desde seus
primórdios. E, se, conforme sustentaram pensadores, como o italiano setecentista Giambattista
Vico ou o helenista de Harvard
Eric Havelock, for verdade que a
prosa propriamente dita vincula-se à invenção da escrita, a forma
primeira dessa arte é a poesia.
Como eram, então, os poemas
compostos há 50 mil ou há 100 mil
anos? Embora o material com
que haviam sido feitos, ondas sonoras propagadas pelo ar, seja
ainda mais perecível do que os
neurônios nos quais foram efemeramente registrados, não é necessariamente impossível recuperar
não tanto os poemas individuais
quanto, por assim dizer, sua essência.
Uma das maneiras de fazê-lo é
por meio da antropologia que,
sob nomes diversos, o Ocidente
desenvolve desde a era das descobertas. Investigando sociedades
isoladas que hipoteticamente se
assemelham às arcaicas, resgatando e preservando seus mitos,
orações, epopéias e canções, seus
praticantes disponibilizaram-nos
um amplíssimo leque de possibilidades criativas através do tempo
e do espaço.
Tais investigações, entre cujos
pioneiros estavam os românticos
alemães, instigaram, no século
passado, não somente antologias
importantes mas também toda
uma tendência da modernidade
que lançou mão dos recursos redescobertos de outras épocas para
produzir obras novas. "Cobra Norato", de Raul Bopp, "Macunaíma", de Mário de Andrade, e
"Meu Tio, o Iauaretê", de João
Guimarães Rosa, são seus mais
célebres exemplos brasileiros, e essas obras, aliás, ilustram um outro instrumento que torna possível nos aproximarmos das composições desaparecidas: a imaginação disciplinada. Por que, afinal, existiria algo que nossos antepassados pudessem fazer, pensar, compor verbalmente e nós
não? É um nexo assim que Mallarmé deveria ter em mente
quando falou em "dar um sentido
mais puro às palavras da tribo".
No entanto, tendo em vista hoje
em dia a extinção do costume de
se reunir diante da caverna e ao
redor da fogueira para ouvir o
bardo, aedo ou rapsodo local repetir a antiga genealogia recém-inventada do cacique, recordar a
profusão de cabeças decepadas
que os guerreiros de outrora empalavam na ponta das lanças ou
contar como o mundo foi chocado
por um coiote hermafrodita depois de ter sido desovado pela
eterna avestruz cósmica na bolsa
de um gigantesco gambá marsupial, seria lícito suspeitar de uma
espécie de descontinuidade radical nos hábitos estéticos da espécie.
Quem, em sã consciência, vai se
dar ao trabalho de articular meticulosamente palavras no papel se
tanto faz quais interjeições apoiadas no palco por incontáveis megawatts obtêm mais atenção e
muito mais fãs ou se 700 páginas
desconjuntadas e repetitivas sobre sexo e dinheiro em inglês ou
sobre sexo e tédio existencial em
francês prometem polpudos direitos autorais e talvez acabem sendo filmadas?
O poeta alemão Hans Magnus
Enzensberger, assegurando que
em qualquer país do mundo, seja
na Islândia, com seus menos de
300 mil habitantes, seja na China,
com cerca de 1,3 bilhão, o número
de leitores de poesia é aproximadamente o mesmo, uns 1.200, chama essa cifra, coincidentemente,
de "Constante de Enzensberger" e
explica o "efeito aspirina" de
acordo com o qual a poesia seria
um concentrado que, devidamente dissolvido, se manifesta em todas as formas de expressão, do
rock à telenovela, passando pela
publicidade. Ele poderia ter acrescentado que o fato de haver quem
insista em escrever, às vezes bem,
para essa soma otimista de leitores demonstra que tal propensão
nada tem de racional, pois, instintiva e atávica, sua única esperança de cura é a engenharia genética.
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