São Paulo, terça-feira, 12 de maio de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

"Heliopolis"


Eu aplaudo a ambição megalômana de James Scudamore de captar o caos de São Paulo


NUNCA ACREDITEI em "Taxi Driver", o filme que Scorsese dirigiu em 1976. O filme pretende ser um retrato violento da vida solitária nas cidades. E então encontramos Travis Bickle, personagem lendária de Robert de Niro, caminhando só em uma rua deserta. Caminhando só rumo ao seu destino homicida. Lembro o cartaz do filme e a frase promocional. "Em todas as cidades há um homem."
Mentira, leitores. Em todas as cidades há vários homens. Essa, aliás, é a diferença entre a cidade e o campo. Amigos e nostálgicos não se cansam de me pregar as virtudes da ruralidade. A cidade é o inferno. Só o campo permite um regresso às nossas origens purificadas. Por vezes eu cedo e, após horas de viagem aos confins do mundo, chego ao meu destino: uma casa no meio do nada.
Alguém elogia a paisagem, o silêncio. A "paz", sempre a "paz". No fundo, a ausência de presença humana. Eu sorrio, concordo por gentileza e depois sinto a tristeza a descer sobre mim. O campo me deprime pela razão mais básica que existe: porque sou um homem de cidades. Sou um viciado no caos físico e metafísico que só uma cidade permite.
Gosto de Londres. Gosto de Nova York. Gosto de São Paulo. E sempre me perguntei por que São Paulo não tem romance à altura da cidade. Onde está o James Joyce brasileiro, disposto a escrever uma odisseia paulistana? Todas as cidades têm o seu Virgílio. Até Lisboa, a "cidade branca" que José Cardoso Pires foi esculpindo em seus romances.
Durante anos, procurei um nome. Não encontrei. Percebo hoje que buscava no sítio errado. Quem disse que a melhor forma de honrar literariamente uma cidade é prerrogativa de um nativo? Esqueçam os nativos. James Scudamore nasceu em 1976, o ano de "Taxi Driver". Viveu em São Paulo. Depois de vencer, em 2007, o prêmio Somerset Maugham com o seu primeiro romance ("The Amnesia Clinic"), escreveu um segundo. "Heliopolis", eis nome, ainda sem edição brasileira.
O título tem duplo sentido. Vila Heliópolis é a favela paulistana onde nasceu Ludo dos Santos, personagem principal e narrador do livro. Mas é também referência a uma cidade onde a riqueza viaja de helicóptero. Eis a mestria de Scudamore: por meio de uma única voz, fazer a viagem de um extremo ao outro. E essa viagem só é possível por meio de Ludo. Sim, ele nasceu na pobreza e, como o próprio afirma, não é fácil nascer pobre e sem talento para jogar futebol. Mas a boa consciência (ou será a má?) da alta burguesia paulistana levará uma família abastada a adotar Ludo e a mãe de Ludo, resgatando-os da favela.
A mãe será cozinheira na fazenda onde os Carnicelli passam os fins de semana. O filho será educado na cidade, longe da mãe, recebendo cada dádiva da família sem possibilidade de recusar. E, é claro, dormindo com a sua nova meia-irmã sem conhecimento do generoso sr. Carnicelli.
O segundo livro de Scudamore está longe de ser perfeito. Existem soluções narrativas que parecem forçadas, para dizer o mínimo, a começar pela real paternidade de Ludo, que subverte a história nas páginas finais. Não era necessário esse tique de telenovela para escrever um romance sobre o país das telenovelas. Sem falar da natureza esquemática das restantes personagens que povoam a vida do herói, ou do anti-herói, sem a grandeza psicológica dele.
Apesar de tudo, eu aplaudo a ambição megalômana de Scudamore de tentar enfrentar e captar a complexidade de São Paulo como nenhum outro escritor que eu conheça. Scudamore desenha, em linguagem de uma precisão poética, a geografia física, caótica, profundamente estimulante, sensual e perigosa de São Paulo. Sem esquecer a geografia social e sentimental dos seres humanos que a povoam. As relações entre ricos e pobres. Entre ricos e ricos. Entre pobres e pobres. Os códigos. Os silêncios. Os medos. Os tabus. Os clichês de comportamento e até de linguagem que são máscaras perfeitas para uma convivência urbana e teatral.
E, no caso de Ludo, a angústia que o persegue da primeira à última página: quem sou eu? Que identidade é a minha? Que lugar ocupo nesta Babel por onde vou planando como se fosse um desses helicópteros que cruzam os céus de São Paulo ao entardecer? É uma pergunta sem resposta e, no caso de Ludo, de impossível resposta. Melhor assim. Nenhuma biografia sobrevive às investidas furiosas de um puritano. E os puritanos não vivem nas cidades, esses antros de perdição, e de encontros, e de esperança.

jpcoutinho@folha.com.br


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