São Paulo, quarta-feira, 12 de maio de 2010

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MARCELO COELHO

Correndo atrás do prejuízo


Do tráfego aéreo aos encanamentos, nada escapa de uma pane "no sistema", como dizem


VI UM computador pela primeira vez em 1972, mais ou menos. Minha escola organizara uma visita à Datamec, uma empresa que na época fazia o processamento dos cartões da Loteria Esportiva.
Não havia muito o que ver, na verdade, além de uns armários girando rolos de fita magnética. A classe foi recebida numa pequena sala de auditório, onde serviram suco de laranja. Suco natural, imagino: seria o toque de domesticidade naquele ambiente de aço escovado.
Um funcionário da empresa começou sua breve palestra. "Bom", disse ele, "existe por aí o medo de que os computadores terminem dominando o ser humano...". Sentado em cima da mesa, o engenheiro nos tranquilizava. "Ora, se houver qualquer risco desse tipo, a solução é bem simples." Deu um puxão no ar, com o punho fechado. "A gente arranca da tomada."
Provavelmente, nem ele mesmo acreditava nisso. Mas talvez não imaginasse até que ponto esse puxão num cabo de eletricidade seria capaz de nos enforcar a todos, se fosse tentado hoje em dia. Do tráfego aéreo aos encanamentos, nada escapa de uma pane "no sistema", como dizem. A guerra do futuro, acredita-se, dispensará mísseis e submarinos. Uma equipe de hackers poderia, a preço módico, causar completa destruição no país inimigo.
Não é preciso de inimigos, entretanto, quando já se tem, em pleno funcionamento, o tal software que detona automaticamente, segundo li no jornal, as vendas de títulos desvalorizados na Bolsa de Valores. Uma das causas do último pânico em Wall Street -além, é claro, do deficit na Grécia- teria sido um dispositivo que começa a vender sem parar as ações que baixaram mais do que o previsto, desencadeando uma espiral de quedas no mercado.
Fala-se também em erro humano na operação, mas não importa. Como nunca, o processo crítico parece agir por conta própria. Há algum tempo, ainda era possível conviver com a ilusão de que os vaivéns da economia dependiam da vontade humana.
Bem que governos ainda tentam. Mas, se as ações de presidentes e ministros vão todas na direção de "acalmar o mercado", não há dúvida de que se pautam mais pela obediência do que pela autonomia de poder.
Os chamados "agentes econômicos" se tornam, afinal, mais passivos do que nunca quando o software de uma máquina age por eles. Sem contar que, quando eles próprios tomam as decisões, nada indica que não sejam em função de um outro software implantado nos neurônios, obediente à moda, à opinião dos pares, ao rumor predominante.
É um jogo de espelhos, na verdade, correspondendo literalmente à origem do termo "especulação". Esse mundo que ninguém controla não é estranho à velha teoria marxista: se não esqueci o que costumava ler a respeito, o termo para isso é "alienação".
Passo agora ao fenômeno, que já comentei outro dia, das filas de consumidores loucos para comprar o último modelo de iPad ou sei lá o quê. Nada mais fácil do que ironizar esse comportamento, dizendo que aquela multidão de otários deposita, num simples objeto de consumo, esperanças inatingíveis de felicidade.
O teórico esloveno Slavoj Zizek ("On Belief", livro de 2001) usa outro termo, marxista e psicanalítico, para definir essa sede por badulaques eletrônicos. São "fetiches", agindo do mesmo modo que as botas pretas e sutiãs com espetos disponíveis nos sex shops.
Serviriam como suplementos e aditivos para um desejo que, em essência, nunca será atendido. O "excesso", diz Zizek num costumeiro jogo dialético, coincide com a "falta". As pessoas querem "mais", porque a "Coisa Real", a "Coisa pra Valer", está ausente, e a falta é irreparável por natureza. Não sei se é bem assim. Há um quê de religioso nesse tipo de visão "trágica" sobre a incompletude humana. Arrisco uma hipótese alternativa.
As pessoas estão na fila do iPad não porque desejam "algo mais". Mas sim porque não querem perder o que já têm. Vivem na mais completa vanguarda tecnológica; não comprar a nova geringonça significaria "ficar para trás" na fila.
Estão -estamos- correndo atrás do prejuízo. Também há quem entre num sex shop para salvar seu relacionamento. E quem vende suas ações para não perder mais do que já acha que perdeu. Mais oportunismo do que destino trágico, portanto. E, em matéria de tragédia, a Grécia certamente já viu coisa bem pior.

coelhofsp@uol.com.br


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