São Paulo, segunda-feira, 12 de junho de 2006

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Bressane de perto

Aos 40 anos de carreira, cineasta finaliza versão "lírica e trágica" de "Cleópatra", prepara filme inspirado em contos de Machado de Assis e afirma que a crítica "não tem gosto"

Marco A. Rezende - 24.jul.02/Folha Imagem
O diretor Júlio Bressane, homenageado em festival português


NAIEF HADDAD
ENVIADO A LAGOS, PORTUGAL

Em 1966, Júlio Bressane estreou na direção com o curta "Lima Barreto - Trajetória". Neste ano, uma das figuras mais originais da história do cinema brasileiro chega, portanto, a quatro décadas de carreira. E 60 anos de vida. E volta agora a um escritor carioca, assim como Lima Barreto. São de Machado de Assis, como Bressane adianta à Folha, os contos nos quais se baseia para seu próximo longa. Na entrevista a seguir, o autor de 26 filmes comenta sua versão de "Cleópatra", que deve ficar pronta ainda em 2006. Além disso, ataca a crítica e diz que o cinema brasileiro é formado por "uma grande manada que se sintoniza" a partir de "três, quatro pessoas". Bressane foi um dos homenageados da segunda edição do Cineport, festival dedicado a obras realizadas em língua portuguesa, em Lagos (Portugal). Encerrado ontem, o evento teve como grande vencedor entre os longas o brasileiro "Cinema, Aspirinas e Urubus", com seis prêmios, incluindo melhor filme e direção (Marcelo Gomes).  

FOLHA - Como foi seu primeiro contato com o cinema? JÚLIO BRESSANE - Quanto tinha 11 anos, fui para os EUA e ganhei uma câmera e um projetor 16 mm. E comecei a fazer filmes, era um brinquedo pra mim. Não parei desde então. Comecei como assistente de direção em "Menino de Engenho" (65), de Walter Lima Jr., e "Viagem ao Fim do Mundo" (68), de Fernando Campos. Dirigi o curta "Lima Barreto - Trajetória" (66) e, em seguida, fiz um longa com o Eduardo Escorel, "Bethânia Bem de Perto" (66).

FOLHA - Sobre o futuro, algum projeto mais ambicioso? BRESSANE - Todo projeto tem uma certa ambição e uma certa obscuridade, e é isso que vai levá-lo a fazer. Você faz porque não sabe o que é. Agora vou começar a mixar "Cleópatra", que é minha versão para a língua portuguesa do mito. Deve ficar pronto até o fim do ano. Mas já preparo outro projeto.

FOLHA - Qual é? BRESSANE - Chama-se "A Erva do Rato". É uma "sugestão" que me foi feita pelo Machado de Assis. São uma página de um conto e mais meia página de outro. Em função dessa página e meia, fiz essa ficção. Começo a dar os primeiros passos para realizar o filme no primeiro semestre do ano que vem.

FOLHA - Quais são os contos? BRESSANE - Meia página de "Um Esqueleto" e uma página de "A Causa Secreta".

FOLHA - Sobre "Cleópatra", o sr. pensou na Alessandra Negrini desde o início no papel principal? BRESSANE - Não pensei em uma atriz, inventei uma personagem, porque é uma nova versão, lírica. Cleópatra é um mito que vem sendo apropriado pelo latim desde o primeiro século, pela língua francesa desde o século 14. Apesar da citação em "Os Lusíadas", de Camões, o mito teve pouca ressonância na língua portuguesa. Tive então vontade de fazer uma versão apropriando-se da memória da língua portuguesa. A força dessa língua, dizem os lexicólogos, está na lírica. Cleópatra foi muito associada, sobretudo na língua inglesa, à sua versão épica. Pensei em uma versão musical, trágica, lírica. Sem ler o roteiro, a Alessandra me disse que gostaria de fazer o filme. Considero-a uma atriz esplêndida, cuidadosa.

FOLHA - O senhor acaba de citar Camões. Para fazer "Filme de Amor", estudou o mito das Três Graças na literatura e na pintura. Neste Cineport, filmes seus, como "Brás Cubas" e "Sermões", nasceram da literatura. O cinema depende de outras manifestações artísticas? BRESSANE - O cinema pode ser concebido de muitas maneiras. Talvez esteja vivo até hoje por essa razão: não conseguiram triunfar, apesar do esforço gigantesco na adoção de uma fórmula única. O cinema é aquele que se coloca em movimento, que transpassa todas as disciplinas, todas as artes, todas as ciências e também a vida. Abrindo-se para outras disciplinas é que se rasga o clichê.

FOLHA - Incomoda ser um diretor premiado em festivais, bem recebido pela crítica e de público reduzido? BRESSANE - Essa é uma questão totalmente artificial, um julgamento absurdo.

FOLHA - Por que absurdo? BRESSANE - Não sou diretor de público reduzido, não sou bem recebido em festivais, não costumo ser bem recebido pela crítica.

FOLHA - "Filme de Amor" ganhou diversos prêmios. BRESSANE - Prêmios aqui e ali. Não quer dizer que foi bem recebido pela crítica, e sim pelo júri. Os filmes foram bem recebidos pelo que puderam ser exibidos, não pela crítica, que, pelo contrário, não tem nem gosto, nem compreensão, nem tempo para compreender. São funcionários de jornal, que têm dedicação a um determinado espaço que precisa preencher de acordo com o que é possível colocar. Considero o resultado dos meus filmes prodigioso no sentido do público. Em função do meu cinema e da minha luta, fiquei fora do que se chamou de mercado. O cinema brasileiro é controlado por três, quatro pessoas. Uma grande manada se sintoniza a partir delas.

FOLHA - E quem são elas? BRESSANE - Não vou citar nomes. Como tudo no Brasil, todas as coisas são interligadas. Esse horror da política é apenas um sintoma do que acontece em todos os segmentos. Agora, fiquei fora do cinema brasileiro por essa vontade (diria maldade) primitiva, essa vingança bruta. Mesmo assim, alguns filmes meus poderiam ter sido exibidos e criado impacto: "A Família do Barulho" (70) foi um estouro, mas ficou apenas 15 dias em cartaz, foi tirado pela polícia; os filmes da Belair [produtora fundada com Rogério Sganzerla nos anos 70] teriam sido um sucesso se tivessem sido lançados. Não foram por impedimento da censura. Meus filmes são lançados em um cinema, com uma cópia, mas que ficam cerca de nove, dez semanas. Considero um prodígio.

FOLHA - Voltando à crítica, sua avaliação é que ela não está preparada para seus filmes? BRESSANE - Não, a crítica não está preparada ela mesma para ser crítica. Com esse repertório, com essa escrita, com esse grau de reflexão, não é possível ser crítica. Mas relevante é a crítica na própria linguagem do cinema. Tudo isso está dentro do horizonte da construção da imagem, que é o que mais nos faz falta. O cinema sofre de uma ausência de observação da imagem, os filmes estão reduzidos a enredos: o sujeito sai de casa, usa roupa assim e assado, trai o marido, volta e depois se mata.


O jornalista NAIEF HADDAD viajou a convite do Cineport

NA INTERNET - Leia a entrevista completa com Júlio Bressane www.folha.com.br/061603

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