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CONTARDO CALLIGARIS
Como contar a nossa história?
Para poder mudar, o que é melhor: procurar a origem dos problemas dentro ou fora de nós?
UM INDIVÍDUO, aflito por não
encontrar ninguém com
quem tocar a vida, consulta
um psicoterapeuta. O que pode fazer o terapeuta?
Nos anos 70, conheci um colega
que abandonara sua prática para
fundar uma agência matrimonial.
Ele estava tão preocupado em curar
as dores da solidão urbana que distribuía seus horários de maneira a
produzir encontros "acidentais", em
sua sala de espera, entre pacientes
que lhe pareciam "compatíveis". No
fim, ele decidiu que tinha mais vocação casamenteira que terapêutica.
Provavelmente, meu colega se importava tanto com a felicidade amorosa dos outros porque, quando
criança, ele não tinha sido razão suficiente para que seus pais continuassem se amando. Igual, o fato é
que, mudando de profissão, ele conseguiu fazer algo interessante com
seu sintoma -o que já é bom.
Seja como for, quando comecei
minha formação de terapeuta, ensinaram-me que, antes de mais nada,
era preciso que os pacientes "subjectivassem" seu problema. Ou seja,
dito em palavras menos bárbaras,
para que o trabalho terapêutico fosse eficiente, a gente deveria primeiro fazer com que os pacientes se
convencessem de que suas dificuldades eram, ao menos em parte, internas.
Portanto, um paciente que se
queixasse de não encontrar companhia deveria ser encorajado a "internalizar" seu problema, ou seja, a
contar sua história questionando o
que haveria de "errado" NELE (falta
de disponibilidade, avareza ao se entregar, covardia do desejo etc.). Aí,
poderíamos ajudá-lo a mudar. "Internalizar" (e não fundar uma agência matrimonial) era, em suma, a atitude certa.
Outro exemplo, oposto. Um paciente consulta um terapeuta porque ele sofre de "depressão" ou de
"déficit de atenção" -assim lhe foi
dito pelo profissional que diagnosticou a doença e prescreveu a medicação. O dito paciente fala de "sua
doença" como se ela fosse um atributo de seu ser, um traço defeituoso
de sua identidade. Com isso, ele mal
vai conseguir contar seus percalços:
se o problema é tão intimamente ligado ao que ele é, que diferença sua
história pode fazer?
Dessa vez, a atitude certa não seria
ajudá-lo a procurar as origens de
"sua doença" FORA de sua identidade, ou seja, a "externalizar" sua
doença?
Nos anos 1990, li "Narrative
Means to Therapeutic Ends" (meios
narrativos para fins terapêuticos
-ed. Norton), de David Epston e
Michael White, terapeutas australianos. A obra me fez uma forte impressão, reavivada, nestes dias, pela
notícia da morte de Michael White,
aos 59 anos, e pela leitura do livro
que ele publicou em 2007, "Maps of
Narrative Practice" (mapas da prática narrativa - ed. Norton). Detalhe:
há outro Michael White, escritor de
romances e história da ciência - ele
não morreu.
Epston e White eram convencidos
de que a possibilidade de mudar
nossa vida depende de nossa maneira de contá-la. Também, eles eram
leitores cuidadosos de Michel Foucault e pensavam que tudo o que
contribui à criação de uma identidade fixa é opressivo e repressivo.
Uma estratégia narrativa e terapêutica que eles propunham consistia em evitar que o paciente considerasse sua doença ou seu problema
como parte de sua identidade. Eles
preferiam sempre levar o paciente a
"externalizar", ou seja, a narrar suas
dificuldades como se fossem externas, percalços ou ataques vindos de
fora.
Aviso: antes de discordar deles, é
bom ler os exemplos clínicos em
que, em seu último livro, White leva
uma criança (e os pais da mesma) a
narrar sua batalha contra a Senhora
Encopresia, que suja as cuecas e os
lençóis, o Senhor Déficit, que impede de estudar, etc., como se fossem
bruxas ou elfos do mal.
Então: para mudar, é melhor "externalizar" nossos problemas, com o
risco de descuidar das dinâmicas íntimas que nos governam, ou é melhor "internalizá-los", com o risco de
hipertrofiar nossa identidade? Não
sei, depende.
Mas, sei que, por exemplo, nas
eleições presidenciais nos EUA,
muito além das questões que serão
debatidas (a guerra, a economia, o
sistema de saúde), a aposta é esta:
será que os eleitores conseguirão
pensar sua história (nacional e privada) como sugerem Epston e White? Será que saberão narrá-la como a
história de uma comunidade de indivíduos, brancos, negros e latinos,
que se chocaram e detestaram em
mil ocasiões, mas não por isso concebem seu destino como conseqüência de identidades fixas e opostas?
ccalligari@uol.com.br
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