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São Paulo, sábado, 12 de julho de 2003

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A apoteose do Zé Ninguém


Joseph Mitchell, repórter da revista "New Yorker", transforma pessoas comuns em personagens literários ao escrever a história do mendigo Joseph Gould


SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Costuma-se ligar aos grandes perfis de celebridades o chamado "New Journalism", o Novo Jornalismo, também conhecido como Jornalismo Literário e Romance de Não-Ficção, gênero que surgiu na imprensa norte-americana nos anos 50, principalmente mas não só nas revistas "New Yorker" e "Esquire", não por acaso até hoje as duas melhores das bancas de lá, mesmo com todos os problemas.
São textos que usam recursos literários e se preocupam tanto com a forma quanto com o conteúdo, ainda que com isso a narrativa perca em praticidade e rapidez (o lide, parágrafo inicial que deve reunir informações básicas como "o que", "quando", "onde", "como" e "por que", é desprezado) o que está ganhando em beleza e fluidez.
Marcaram época, por exemplo, os relatos de Gay Talese, um dos papas do gênero, sobre Joseph Bonanno em "Honrados Mafiosos" e sobre Frank Sinatra em "Aos Olhos da Multidão", este um clássico, cujo primeiro parágrafo traz o trecho "Frank Sinatra estava resfriado. Sinatra resfriado é Picasso sem tintas, Ferrari sem gasolina -só que pior...".
Da mesma maneira, são fundamentais as narrativas de Norman Mailer sobre a luta entre Muhammad Ali e George Foreman no Zaire, em 1974, em "A Luta", e de Tom Wolfe sobre a conquista do espaço pelos americanos, em "Os Eleitos", entre outras.
Mas é nas histórias de pessoas comuns como eu e você que o Novo Jornalismo cresce, em textos como "A Sangue Frio", em que Truman Capote reconta um assassinato numa cidadezinha do Kansas, ou capítulos do mesmo "Aos Olhos da Multidão" de Talese, principalmente o dos operários que construíram a ponte que liga Manhattan a Staten Island ou o do responsável pelo obituário do "The New York Times".
Pois todos eles devem muito a um mesmo nome, o jornalista Joseph Mitchell (1908-96), cujo livro "O Segredo de Joe Gould" está sendo lançado agora no Brasil. Um sujeito claro, de fala mansa, nascido na Carolina do Norte, era o melhor repórter da melhor fase da "New Yorker". Os textos que produziu principalmente nos anos 30 e 40 são considerados a pré-história do Novo Jornalismo.
É certo que Mitchell tinha de sobra o tripé que compõe o sonho e domina o pesadelo de todo jornalista -tempo, dinheiro e espaço para escrever-, mas é o que fazia com eles que o diferenciou do resto da multidão. Todo começo de semana, deixava a redação da revista e andava pelas ruas de Nova York atrás de histórias, boas histórias para contar.
Quase sempre voltava para sua mesa com relatos demasiadamente humanos de zés-ninguéns, os "low lifes" na gíria local, a quem dava dimensão de heróis literários. Gente como Lady Olga, mulher barbada do circo local, o Comodoro Dutch, que organizava bailes anuais em homenagem a si próprio, e o Caolho Jimmy Nikanov, autoproclamado "rei dos batedores de carteira".
Foi ao decidir contar a história do vagabundo Joseph Ferdinand Gould, no entanto, que ele atingiu o veio de ouro jornalístico que de certa maneira marcaria toda a sua vida profissional. Joe Gould já era conhecido pelos frequentadores do Greenwich Village, quando o bairro nova-iorquino realmente reunia o supra-sumo da boêmia intelectual.
Nas palavras iniciais de Mitchell, ele era "um homenzinho alegre e macilento" que morava nas ruas, vivia de favores e consumia quantidades industriais de ketchup. O que o fazia especial era seu passado de estudante de Harvard originário de uma família rica e aquilo que carregava debaixo do braço perenemente, um calhamaço que, somado a outros calhamaços guardados, teria 9 milhões de palavras e compunha o que batizou de "Uma História Oral de Nossa Época".
Os trechos que Joe Gould oferecia a quem se dispusesse a ler e o fato de terem sido escritos por um homem que era pouco mais que um mendigo entusiasmaram gente do calibre do poeta e.e. cummings (1894-1962).
Joe Gould rendeu a Joseph Mitchell dois relatos. O primeiro é "Professor Gaivota", seu perfil propriamente dito, publicado na edição de 12 de dezembro de 1942. O segundo é "O Segredo de Joe Gould", o perfil do perfil, publicado em duas edições da revista de 1964, sete anos depois da morte do perfilado. É então que o jornalista vai mais fundo e descobre algo que só suspeitava: a tal história oral nunca existiu.
Foi o último texto escrito por Joseph Mitchell, que continuou indo diariamente à redação da "New Yorker" e recebendo salário até sua morte, em 1996.
O livro lançado agora por aqui reúne os dois perfis. Para quem tem preguiça de vencer suas poucas páginas, vira e mexe o canal pago Telecine exibe "Crônicas de uma Certa Nova York", delicado longa costurado por Stanley Tucci (que interpreta o próprio Mitchell) que traz um soberbo Ian Holm como Joe Gould. Vai conhecer a história, mas perderá o melhor da viagem.


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