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São Paulo, sábado, 12 de julho de 2003

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"CARTAS A UM JOVEM E SUAS RESPOSTAS"

Obra traz correspondência entre escritores, que durou três anos, até 45

Mário queria tirar Sabino da corda bamba

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Em 1944, Mário de Andrade escreveu ao então jovem escritor mineiro Paulo Mendes Campos: "Tenho uma enorme esperança em você, muita no Hélio [Pellegrino], alguma no Otto [Lara Resende] e nenhuma no Fernando [Sabino]". A carta deitou azeite no fogo.
Sabino, que andava melindrado com o comportamento do papa do modernismo, de quem podia ser considerado pupilo, estrilou de vez escrevendo-lhe: "Quanta humildade eu precisava ter, nesta carta que será longa e arrancada à força -para que ela não te fira apenas, mas ferindo te faça me escutar, que eu preciso de você, e você está se negando a me ouvir".
O mal-estar, que gerou nova missiva de Mário e terminou em pazes, originou-se meses antes, quando Sabino convidou o mestre para ser padrinho de seu casamento. O pedido tinha sentido político, pois servia para contrabalançar a presença no consórcio de Getúlio Vargas como padrinho da noiva.
O presidente atendia a solicitação do governador e futuro sogro de Sabino. Mário, ferrenho opositor do regime ditatorial de Vargas, a princípio aceitou comparecer. Depois, voltou para trás.
Para entender o caso, o leitor deve recorrer a "Cartas a um Jovem e Suas Respostas", excelente documento do ideário de uma época. A desavença representa o clímax da correspondência entre Sabino e Mário, que se estendeu por três anos, até pouco antes da morte do último, em 1945. Por trás dela reside a discussão sobre o papel social da arte e a atitude do artista diante das vicissitudes do mundo.
A carta inaugural de Mário elogia a "estréia excelente" do moço de 18 anos, mas faz reservas: "não que o livro ["Os Grilos Não Cantam Mais'] seja bom". E aconselha o autor a abreviar o nome: "Tavares Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino. O que é impossível é Fernando Tavares Sabino". Nas epístolas seguintes, Mário sugere leituras: desde clássicos portugueses até Rainer Maria Rilke e Katherine Mansfield. Dá dicas de estilo: evitar a linguagem "pernóstica, lusitana" e, acima de tudo, pilhar Machado de Assis: "Roube dele tudo quanto possa ser útil".
Quando Sabino enfim termina sua novela "A Marca", que acabará franqueando sua entrada definitiva na literatura brasileira, Mário não poupa elogios: "É uma coisa admirável sua linguagem e seu estilo [...] uma obra-de-arte muito perfeita, magistral". Mas atenta para um elemento "hedonístico, de arte pela arte" na obra. Para Mário, seu pupilo deveria publicar imediatamente a novela e nunca mais escrever nada da mesma sorte.
O paulista previne o mineiro contra as ciladas da arte pela arte da mesma forma que o adverte dos riscos dos apelos mundanos. Sabino é perigosamente "solicitado pelo ambiente alto burguês". As circunstâncias o confrontam com várias "facilidades" (o bom casamento, o bom emprego no governo) que poderiam, caso não fossem bem administradas, comprometer sua integridade moral como artista.
A arte impõe sacrifícios, requesta a participação do artista, leva-o a uma tomada de posição. A posição de Mário o faz desancar um escritor de prestígio apreciado por Sabino -Otávio de Faria, cujos valores "psicofilosóficos e profundistas" representavam "influência deletéria" para autores como Augusto Schmidt e Lúcio Cardoso. Deste último diz, maldosamente: "Está vendo como ele não participa? [...] Não passa da "moça simpática" que nem zanga por a gente não dançar com ela durante um baile inteirinho". Vinícius de Moraes só se salvou pois teria conseguido libertar-se.
Mário também procura influenciar Sabino a tomar as decisões acertadas. Vargas, no terreno da política, e Faria, na arena artística, são os "pais" a serem renegados. Para Mário, o jovem escritor estava na corda bamba. Era preciso dar-lhe equilíbrio. Nem que isso significasse deixá-lo ao alcance das feras.


Cartas a um Jovem e Suas Respostas    
Autores: Mário de Andrade e Fernando Sabino
Editora: Record
Quanto: R$ 30 (224 págs.)



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