São Paulo, domingo, 12 de julho de 2009

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DVDs

Crítica/"Kes"

Loach aborda fim da infância em seu mais belo trabalho

"Kes" pode ser visto como um perfeito duplo inglês do francês "Os Incompreendidos'

KLEBER MENDONÇA FILHO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Bernard Shaw escreveu em "Pigmalião" que "é impossível para um inglês abrir a boca sem ser odiado ou desprezado por outro inglês". A reflexão talvez seja uma base reveladora para o cinema de Ken Loach, que geralmente ocupa o escaninho do "realismo social" tão usado pela crítica. Seus melhores filmes parecem interessados não só em observar a realidade, mas em escutar uma cultura (a britânica) que se autoexamina pelo sotaque. Caso específico de "Kes" (1969), o mais belo filme da longa carreira de Loach. "Kes" é uma joia reconhecida do cinema inglês, feito no final de uma década que viu mudanças na imagem filmada dos britânicos. A ideia de "clássico inglês" é normalmente associada à pompa de um David Lean e um "Lawrence da Arábia" (1962), ou às adaptações recentes de Merchant & Ivory, como "Retorno a Howard's End" (1993). São claramente versões mais palatáveis da Grã-Bretanha para o mercado. Nesses filmes, personagens do povo eram "típicos" e/ou coadjuvantes, peças do conflito de classes em adaptações de Charles Dickens, ou glamourizados como o cockney sedutor de Michael Caine, em "Alfie". Trabalhando na TV britânica nos anos 60, Loach já comungava da filial inglesa da nouvelle vague, a chamada new wave britânica, de autores como Tony Richardson e Karel Reisz. Isso o levou naturalmente a um filme como "Kes". O tratamento dado à história do menino Billy (David Bradley), morador de uma comunidade mineira de Yorkshire, parece sugerir "Kes" como o perfeito duplo inglês do francês "Os Incompreendidos", que François Truffaut filmou dez anos antes. Os filmes se completam como frutos honestos de suas respectivas culturas. Ambos contêm imagens milagrosas da juventude que vão além da simples dramatização. Os dois abordam com força o enterro da infância. Billy, com o ar de um esquilo assustado, parece mais à vontade dois graus acima da realidade. Isso o ajuda a lidar com professores neuróticos, o irmão cruel e a distância dos colegas. Seu maior interesse está em Kes, o falcão que ele conquistou com astúcia e uma curiosidade esclarecida por livros. O perigo é sugerir que "Kes" é um filme piegas sobre a amizade de uma criança com um animalzinho, o que não é. Composto por uma série de momentos que não têm preço (o jogo de futebol, o castigo dos meninos, a apresentação na aula de inglês), filmados em locação, percebe-se que é a fala espessa de toda uma classe social que parece dar a Loach o seu prazer como autor e a autenticidade do seu relato. Billy e o seu ambiente social se bastam, e essa identidade está num falar que será explorado de forma radical ao longo de toda a filmografia do diretor. "Kes" passou há 40 anos na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Em maio, em Cannes, Loach mostrou seu novo filme, "Looking For Eric", crônica bem-humorada sobre um torcedor fanático e seu ídolo francês, Eric Cantona. O longa sugere o quanto Loach, 73 anos, deve estar de bem com a vida e confirma seu interesse pelo falar do inglês popular, sem esquecer a bola de futebol.


KES
Direção: Ken Loach
Lançamento: Lume Filmes (R$ 49; classificação: 14 anos)
Avaliação: ótimo




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