São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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LIVROS/LANÇAMENTOS

"GUERRA SEM GUERRA"
O conflito no país das maravilhas

JOSÉ ARBEX JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Era um país muito estranho.
Seu presidente, um feroz ditador, aliou-se a democracias liberais em uma guerra contra outras ditaduras, sabendo que a vitória de seus aliados significaria o fim de seu próprio regime. Apelando ao sentimento patriótico, organizou um "esforço de guerra" que não sensibilizou ninguém, nem as elites, nem as camadas populares - tanto que a guerra quase não deixou registros na memória das pessoas que lhe foram contemporâneas: ela é apenas mencionada em livros de história como fato incidental, exterior à vida da nação, mera circunstância, acidente de percurso.
Em nome da guerra, o ditador ordenou o racionamento de alimentos e a economia de combustível; ampliou o capacidade de intervenção da polícia na vida dos indivíduos; transformou operários em "soldados da produção" e as fábricas em unidades militarizadas da "batalha da produção"; hostilizou estrangeiros como "inimigos da pátria" e utilizou ao máximo a máquina da propaganda de seu próprio regime. Apesar disso, a guerra só mobilizou mesmo a população em seu final, quando as tropas enviadas para lutar no front voltaram para a casa. Houve festa nas ruas, desfiles e comemorações. Mas o ditador sabia que o que se comemorava não era tanto o fim da guerra: era, de fato, a morte de sua ditadura.
Poderia ser o enredo de uma bela obra de ficção, no melhor estilo de um Alejo Carpentier. Mas não é. Trata-se, no caso, do Brasil à época do Estado Novo, mais especificamente durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o ditador Getúlio Vargas decidiu se aliar aos Estados Unidos contra a Alemanha nazista. Esse período da história brasileira, já tantas vezes analisado por intelectuais, professores e especialistas, é agora reconstruído por Roney Cytrynowycz, segundo uma perspectiva original, instigante, provocadora, em "Guerra sem Guerra - A Mobilização e o Cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial".

O que a memória diz
Cytrynowycz não se detém nos eixos tradicionais de análise desse período -o "jogo duplo" diplomático de Getúlio Vargas, que ora flertava com Berlim, ora com Washington; a atuação da FEB (Força Expedicionária Brasileira) e da FAB (Força Aérea Brasileira) em solo estrangeiro; os efeitos da guerra sobre a economia, particularmente a industrialização do país como consequência da restrição às importações. Seu objetivo é "recuperar a história paulista e brasileira vivida sob a Segunda Guerra Mundial, bem como sua memória coletiva".
Curiosamente, esse trabalho -tese de doutorado em história, defendida em 1998, na USP- nasceu de um equívoco, como o diz o próprio autor. A idéia inicial era pesquisar os impactos da guerra sobre a vida cotidiana em São Paulo. Cytrynowycz descobriu, depois, que essa era uma missão impossível, já que a guerra não exerceu qualquer impacto significativo na vida das pessoas comuns -daí, aliás, o título do livro. Ao contrário, ela foi utilizada pelo regime para criar um front interno na batalha política e ideológica pela ampliação da base de sustentação do já velho Estado Novo. Essa discrepância entre as expectativas iniciais do pesquisador e os resultados concretos de sua pesquisa só atesta a seriedade de seu trabalho. Não raro, acontece o contrário: o pesquisador "ajusta" os documentos à tese.
Cytrynowycz nota que as metáforas mobilizadas pelo regime varguista durante a guerra -os ideais militaristas do "povo em marcha" e qualidades como disciplina, bravura, lealdade, destreza e resistência muscular, organização e vigilância etc.- já faziam parte do ideário do Estado Novo, muito antes de a guerra começar. E mostra, graças a um intenso trabalho de levantamento documental, incluindo a leitura de jornais, revistas, boletins, letras de música, filmes, diários, crônicas e memórias, prosa e poesia, receitas culinárias e artes plásticas, documentos e leis do governo, que a guerra aparece esporadicamente no imaginário coletivo da época. Ela não é uma referência central para ninguém.

O diário de Mina Mutchnik
É particularmente comovente a reconstituição que Cytrynowycz faz da "poesia dos atos cotidianos" da época, a partir de um diário que começou a ser escrito em 6 de setembro de 1939, por Mina Mutchnik, uma garota paulistana que tinha, então, 14 anos (pág. 40). O diário foi encerrado em 17 de fevereiro de 1942. Apoiando-se, metodologicamente, em um ensaio feito por Roberto Schwarz sobre o diário de Helena Morley, Cytrynowycz mostra que, para a jovem Mina, a guerra apareceu como uma notícia nos jornais, como algo comentado, mas não como um fenômeno que tenha causado aflição, pânico ou mobilização. Isto é, permanecia algo externo à sociedade brasileira.
No capítulo seguinte, "O "Pão de Guerra" e o Fator Dieta" (pág. 50), Cytrynowycz mostrará que o racionamento de comida feito pelo governo, assim como o apelo ao cultivo de hortaliças no próprio quintal das casas e outras providências, criaram um poderoso efeito de mobilização, cujo objetivo era a constituição do front interno, com a imposição da disciplina do Estado sobre a nação. Em outros termos, a escassez relativa de alimento nunca atingiu níveis que pudessem significar a ocorrência de fome em São Paulo. O que ocorreu foi a instrumentalização da escassez com objetivo de fortalecimento político e de propaganda ideológica do regime.
Em seguida, no capítulo "O Gasogênio e a Mobilização da Escassez" (pág. 66), Cytrynowycz mostrará que a mesma lógica se aplica ao uso do combustível, mas com uma particularidade: o rico, proprietário do automóvel, aceita usar o gás pobre (o gasogênio), dentro de um esforço de guerra que une toda a nação rumo a um objetivo comum. Nada mais adequado ao ideário nacional-populista! Capítulo por capítulo, o autor buscará nas mais variadas formas de organização do cotidiano -na disciplina das filas, na transformação das mulheres em enfermeiras, na segregação de estrangeiros (em particular, dos japoneses), nas letras de samba, nos monumentos etc.- os vestígios da máquina de propaganda e mobilização do Estado Novo.
E a história termina sem fim. Ou melhor, termina com uma afirmação que é central para qualquer um que queira entender o mundo e o Brasil no século 20: após a derrocada do Estado Novo, que coincidiu com fim da Segunda Guerra Mundial, começou a Guerra Fria, um processo de permanente mobilização simbólica do Bem contra o Mal. Mas isso é uma outra história.
Será?


Guerra sem Guerra      Autor: Roney Cytrynowycz Editora: Geração Editorial/Edusp Quanto: R$ 36 (410 págs.)




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