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LIVROS/LANÇAMENTOS
"GUERRA SEM GUERRA"
O conflito no país das maravilhas
JOSÉ ARBEX JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
Era um país muito estranho.
Seu presidente, um feroz
ditador, aliou-se a democracias liberais em uma guerra contra outras ditaduras, sabendo que a vitória de seus aliados significaria o
fim de seu próprio regime. Apelando ao sentimento patriótico,
organizou um "esforço de guerra" que não sensibilizou ninguém, nem as elites, nem as camadas populares - tanto que a
guerra quase não deixou registros
na memória das pessoas que lhe
foram contemporâneas: ela é apenas mencionada em livros de história como fato incidental, exterior à vida da nação, mera circunstância, acidente de percurso.
Em nome da guerra, o ditador
ordenou o racionamento de alimentos e a economia de combustível; ampliou o capacidade de intervenção da polícia na vida dos
indivíduos; transformou operários em "soldados da produção" e
as fábricas em unidades militarizadas da "batalha da produção";
hostilizou estrangeiros como
"inimigos da pátria" e utilizou ao
máximo a máquina da propaganda de seu próprio regime. Apesar
disso, a guerra só mobilizou mesmo a população em seu final,
quando as tropas enviadas para
lutar no front voltaram para a casa. Houve festa nas ruas, desfiles e
comemorações. Mas o ditador sabia que o que se comemorava não
era tanto o fim da guerra: era, de
fato, a morte de sua ditadura.
Poderia ser o enredo de uma bela obra de ficção, no melhor estilo
de um Alejo Carpentier. Mas não
é. Trata-se, no caso, do Brasil à
época do Estado Novo, mais especificamente durante a Segunda
Guerra Mundial (1939-1945),
quando o ditador Getúlio Vargas
decidiu se aliar aos Estados Unidos contra a Alemanha nazista.
Esse período da história brasileira, já tantas vezes analisado por
intelectuais, professores e especialistas, é agora reconstruído por
Roney Cytrynowycz, segundo
uma perspectiva original, instigante, provocadora, em "Guerra
sem Guerra - A Mobilização e o
Cotidiano em São Paulo durante a
Segunda Guerra Mundial".
O que a memória diz
Cytrynowycz não se detém nos
eixos tradicionais de análise desse
período -o "jogo duplo" diplomático de Getúlio Vargas, que ora
flertava com Berlim, ora com
Washington; a atuação da FEB
(Força Expedicionária Brasileira)
e da FAB (Força Aérea Brasileira)
em solo estrangeiro; os efeitos da
guerra sobre a economia, particularmente a industrialização do
país como consequência da restrição às importações. Seu objetivo é
"recuperar a história paulista e
brasileira vivida sob a Segunda
Guerra Mundial, bem como sua
memória coletiva".
Curiosamente, esse trabalho
-tese de doutorado em história,
defendida em 1998, na USP-
nasceu de um equívoco, como o
diz o próprio autor. A idéia inicial
era pesquisar os impactos da
guerra sobre a vida cotidiana em
São Paulo. Cytrynowycz descobriu, depois, que essa era uma
missão impossível, já que a guerra
não exerceu qualquer impacto
significativo na vida das pessoas
comuns -daí, aliás, o título do livro. Ao contrário, ela foi utilizada
pelo regime para criar um front
interno na batalha política e ideológica pela ampliação da base de
sustentação do já velho Estado
Novo. Essa discrepância entre as
expectativas iniciais do pesquisador e os resultados concretos de
sua pesquisa só atesta a seriedade
de seu trabalho. Não raro, acontece o contrário: o pesquisador
"ajusta" os documentos à tese.
Cytrynowycz nota que as metáforas mobilizadas pelo regime
varguista durante a guerra -os
ideais militaristas do "povo em
marcha" e qualidades como disciplina, bravura, lealdade, destreza
e resistência muscular, organização e vigilância etc.- já faziam
parte do ideário do Estado Novo,
muito antes de a guerra começar.
E mostra, graças a um intenso trabalho de levantamento documental, incluindo a leitura de jornais,
revistas, boletins, letras de música, filmes, diários, crônicas e memórias, prosa e poesia, receitas
culinárias e artes plásticas, documentos e leis do governo, que a
guerra aparece esporadicamente
no imaginário coletivo da época.
Ela não é uma referência central
para ninguém.
O diário de Mina Mutchnik
É particularmente comovente a
reconstituição que Cytrynowycz
faz da "poesia dos atos cotidianos" da época, a partir de um diário que começou a ser escrito em 6
de setembro de 1939, por Mina
Mutchnik, uma garota paulistana
que tinha, então, 14 anos (pág.
40). O diário foi encerrado em 17
de fevereiro de 1942. Apoiando-se, metodologicamente, em um
ensaio feito por Roberto Schwarz
sobre o diário de Helena Morley,
Cytrynowycz mostra que, para a
jovem Mina, a guerra apareceu
como uma notícia nos jornais, como algo comentado, mas não como um fenômeno que tenha causado aflição, pânico ou mobilização. Isto é, permanecia algo externo à sociedade brasileira.
No capítulo seguinte, "O "Pão de
Guerra" e o Fator Dieta" (pág. 50),
Cytrynowycz mostrará que o racionamento de comida feito pelo
governo, assim como o apelo ao
cultivo de hortaliças no próprio
quintal das casas e outras providências, criaram um poderoso
efeito de mobilização, cujo objetivo era a constituição do front interno, com a imposição da disciplina do Estado sobre a nação. Em
outros termos, a escassez relativa
de alimento nunca atingiu níveis
que pudessem significar a ocorrência de fome em São Paulo. O
que ocorreu foi a instrumentalização da escassez com objetivo de
fortalecimento político e de propaganda ideológica do regime.
Em seguida, no capítulo "O Gasogênio e a Mobilização da Escassez" (pág. 66), Cytrynowycz mostrará que a mesma lógica se aplica
ao uso do combustível, mas com
uma particularidade: o rico, proprietário do automóvel, aceita
usar o gás pobre (o gasogênio),
dentro de um esforço de guerra
que une toda a nação rumo a um
objetivo comum. Nada mais adequado ao ideário nacional-populista! Capítulo por capítulo, o autor buscará nas mais variadas formas de organização do cotidiano
-na disciplina das filas, na transformação das mulheres em enfermeiras, na segregação de estrangeiros (em particular, dos japoneses), nas letras de samba, nos monumentos etc.- os vestígios da
máquina de propaganda e mobilização do Estado Novo.
E a história termina sem fim. Ou
melhor, termina com uma afirmação que é central para qualquer um que queira entender o
mundo e o Brasil no século 20:
após a derrocada do Estado Novo,
que coincidiu com fim da Segunda Guerra Mundial, começou a
Guerra Fria, um processo de permanente mobilização simbólica
do Bem contra o Mal. Mas isso é
uma outra história.
Será?
Guerra sem Guerra
Autor: Roney Cytrynowycz
Editora: Geração Editorial/Edusp
Quanto: R$ 36 (410 págs.)
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