São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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COMENTÁRIO
Fox percorre 500 anos de arte brasileira em 7min36s

MARIO SERGIO CONTI
DA REPORTAGEM LOCAL

O México tem pressa. Na quarta-feira passada, a Mostra do Redescobrimento ultrapassou a marca de 1 milhão de visitantes. No mesmo dia, foi batido o recorde de velocidade de visita à exposição: Vicente Fox, presidente eleito do México, percorreu o prédio da Bienal, a Oca e a Pinacoteca do Ibirapuera em 7min36s cravados. Foram quase 70 anos de arte brasileira por minuto, mais de um ano por segundo.
O México tem fome. "Vamonos rapidamente para que los convidados para la cena no se quedem esperando por mucho tiempo", disse Fox a Edemar Cid Ferreira, presidente da Associação Brasil 500 Anos, assim que botou os pés na Bienal, às 21h40 da quarta-feira. "Si, por supuesto", respondeu Ferreira. Foi dada a largada do cortejo.
No abre-alas, disparou o time de contorcionistas: nove fotógrafos que corriam de costas para flagrar o presidente eleito de frente, empunhando suas máquinas e carregando suas mal-ajambradas bolsas com lentes e filmes.
O segundo pelotão era formado por seguranças brasileiros e mexicanos. Os primeiros estavam preocupados em evitar que os fotógrafos trombassem com as obras de arte. Os segundos, cientes de que "el jefe" tinha pressa e fome, urgiam os fotógrafos a acelerar a marcha a ré.
No terceiro bloco vinha a ala "Ex": o ex-petista Francisco Weffort, hoje ministro da Cultura do governo tucano-pefelê-malufista, e Jorge Castañeda, um ex-esquerdista que escreveu uma biografia de Che Guevara e agora é assessor de relações internacionais de Fox, que é tão de esquerda quanto o ex-prefeito e ex-chanceler Olavo Setúbal.
Castañeda também estava preocupado com os fotógrafos. "Vamos apertar o passo para ficar do lado do presidente e aparecer nas fotos", disse o esguio e elétrico Castañeda ao rechonchudo e bonachão Weffort. "Ah, não, vai você", retrucou o ministro da Cultura, ofegando com discreta elegância. Não houve acordo entre as forças da falecida esquerda: a dupla "Ex-Ex" apressou a marcha, mas não o suficiente para alcançar o veloz Fox.
Para ir do prédio da Bienal à Oca, a comitiva embarcou em carrinhos elétricos. Uma lépida fotógrafa se aboletou com sua traquitana no banco da frente de um veículo. Um segurança mexicano com feições de índio tentou forçá-la a ceder o lugar a um compatriota empresário.
"Ela vai com a gente", retrucou o segurança brasileiro que dirigia o carrinho, um moreno de óculos escuros. "No, ella no puede", protestou o mexicano. "Ah, é?", perguntou o brasileiro, acelerando com um sorriso sardônico e deixando para trás o sonho bolivariano da solidariedade latino-americana.
Ao percorrer a marquise, a comitiva teve de desviar de skatistas que, de farra, deslizavam perigosamente entre os carrinhos. Seguranças mexicanos e brasileiros se uniram numa mesma expressão de ódio contra a moçadinha skatista, que não estava nem aí para a Operação Condor improvisada.
"Que impressionante", disse Vicente Fox a respeito da arquitetura da Oca, onde se deteve por três segundos para contemplar uma máscara mortuária indígena. "Que impressionante", repetiu o presidente na Pinacoteca, parando outros dois segundos para analisar uma máscara de reisado.
Ao chegar ao salão do jantar, o impressionado Fox não parecia ter subido e descido as incontáveis e infindáveis rampas da mostra. Aos 58 anos, estava todo lampeiro dentro de seu terno cinza-claro, com seus quase 2m perfeitamente aprumados sobre os saltinhos de suas botas pretas.
Enquanto aguardavam Fox, os convivas do jantar ("para pessoas representativas da sociedade paulista", conforme dizia o convite), entretinham-se em conversas amenas, lubrificadas por vinhos australianos, uísques escoceses e canapés de gosto indefinível.
Numa roda, o reitor Jacques Marcovich se queixava da violência dos militantes do PSTU e da "retórica incendiária" da filósofa Marilena Chauí durante a greve dos professores da USP.
Noutra, Roberto Mangabeira Unger, ex-quase-candidato do ex-PCB à prefeitura paulistana, tentava explicar as diferenças entre as estratégias políticas da primeira, da segunda e da terceira via na atual conjuntura internacional. "Si, es preciso reduzir el cambio del coche de la tercera para la segunda marcha", disse-lhe um bem-humorado interlocutor mexicano.
Os cerca de 40 convidados (nenhum deles negro, "por supuesto") acomodaram-se em cinco mesas. O cardápio consistia de salada, badejo assado, bobó de camarão apimentado e ravióli com molho branco.
O serviço foi à americana, também conhecido como bandejão: cada convidado ia até a bancada com a comida, onde eram atendidos por dois garçons (um deles negro, "como no?") que, aos sussurros, discutiam momentosas questões trabalhistas. "É claro que vai ter hora extra", dizia um, otimista. "Sei não", rebatia o outro, cético.
Serviram-se primeiro os integrantes da mesa presidencial. As outras mesas, observando a fila minguar lentamente, quedaram-se, à espreita. Ficava feio partir em desabalada carreira rumo às iguarias fumegantes, ainda que passasse das 22h e os estômagos ronronassem num uníssono chiquérrimo. Exceto o do secretário municipal da Cultura Rodolfo Konder, que, escolado, fizera uma escala numa barraquinha de cachorro-quente do Ibirapuera antes de seguir viagem para a Pinacoteca.
A mesa vice-presidida pelo vice-presidente da Fundação Brasil 500 Anos, a mais animada, foi de uma agilidade ímpar. O editor Pedro Paulo de Sena Madureira levantou-se, ajeitou a gravata-borboleta vermelha, apontou com a piteira a bancada com as comilanças e, antes que pudesse conclamar "os que forem brasileiros que me sigam!", seus amigos o ultrapassaram e chegaram aos quitutes antes dele e das outras mesas.
Edemar Cid Ferreira levantou e fez um curto discurso de saudação. Fox agradeceu com um discurso não tão curto. "Alguém quer fazer alguma pergunta ao presidente?", indagou Cid Ferreira. Para chateação dos que haviam optado em escutar os discursos sem comer, foram feitas cinco perguntas.
Nas cinco respostas, Fox foi gradativamente da prolixidade à objetividade. Na primeira delas, quase contou a história do México desde o surgimento da civilização maia até a sua eleição. Na última, sobre as relações com Cuba, limitou-se a responder que seriam incrementadas.
Na mesa com maior número de maledicentes, cogitou-se perguntar ao presidente se ele era gay. Houve polêmica. Uns notaram a semelhança entre o bigode do divorciado Fox e o do solteirão convicto Freddie Mercury, falecido líder da banda Queen. Outros argumentaram que o bigodão presidencial era um vistoso estandarte do machismo mexicano.
Debateu-se também à sorrelfa a propriedade de se fazer uma questão sobre o narcotráfico. Mas a formulação da pergunta "Señor presidente, le gusta la marijuana?" - não conseguiu unanimidade e foi abandonada entre risotas.
Fox não fez nenhuma piadinha. Parecia tão tenso quanto sua interlocutora, Lygia Fagundes Telles. Durante todo o jantar, a escritora lançava olhares súplices em direção à mesa dos maledicentes. Depois, ela explicou: "Eu estava louca para fumar, mas como o presidente não fuma, me controlei, e ficava olhando com inveja para a mesa em que mais se fumava".
O México tem sono. Logo depois da sobremesa, Cid Ferreira anunciou que Fox, fatigado, estava se retirando. Ao segurança que embombou com a fotógrafa coube a hercúlea tarefa de carregar os catálogos da mostra. Somados, eles pesam doze quilos.
Marcel Proust, que foi cronista social amador, ensina que o melhor de uma festa são os comentários a respeito dela no dia seguinte. Comentários pós-jantar dão base à seguinte lista de altos e baixos do regabofe na Pinacoteca, acompanhada de frases de participantes:
A mais bonita: Daniela Crespi de Camaret. "Como dizia o Ibrahim Sued, ela é bem-nascidérrima."
O mais sem desconfiômetro: o jornalista Eric Nepomuceno, por ter feito sua pergunta a Fox em castelhano. "O brizolista quis dar uma de poliglota."
A gracinha mais infame: "Esse Fox é uma raposa".
O mais entusiasmado com a mostra: Cid Ferreira. "Ele falou 234 vezes que a exposição já teve 1 milhão de visitantes, eu contei."
O mais por cima da guacamole: Jorge Castañeda. "É o fim não desligar o celular durante o jantar."


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