São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Da Rússia com amor


Americanos e europeus acreditam que tudo o que é mau para a Rússia é bom para o Ocidente

1. EXISTEM MOMENTOS em que um colunista não queria ter razão. Lamento. O colunista tem razão. Seis meses atrás, escrevi que a independência do Kosovo era um erro. E que os aplausos do Ocidente democrático perante o fato, um erro ainda maior ("Os fantasmas divertem-se", 26/2). Na minha cabeça, confesso que o verdadeiro perigo não estava na Sérvia. Estava no aliado tradicional da Sérvia, ou seja, na Rússia, que não poderia tolerar mais esta provocação.
Pormenor curioso: a Guerra Fria terminou em 1991, mas a mentalidade própria da Guerra Fria continua a fazer-se sentir em Washington e Bruxelas. Americanos e europeus acreditam que tudo o que é mau para a Rússia tem necessariamente de ser bom para o Ocidente democrático. E se um Kosovo independente não servia aos interesses russos, permitindo ao Ocidente expandir sua margem de influência nos balcãs, tanto melhor. Na cabeça de americanos e europeus, humilhar e cercar a Rússia é sempre o ideal.
Aliás, essa atitude de provocação não se limitava ao Kosovo. Ao alimentar as esperanças da Ucrânia, ou mesmo da Geórgia, de uma entrada na União Européia e na Otan, ninguém no Ocidente parava um minuto para pensar: e a Rússia? Estaria preparada para aceitar canhões do Ocidente às suas portas? A resposta exige um exercício de imaginação: imaginem se Washington aceitaria mísseis russos a umas centenas de quilômetros da Casa Branca.
Os resultados desta política estão à mostra: se Kosovo se torna independente, não há qualquer legitimidade, política ou moral, para negar igual estatuto à Ossétia do Sul, que só no papel faz parte da Geórgia. Não admira por isso que, desde a independência do Kosovo, os confrontos entre separatistas ossetianos e as autoridades da Geórgia tenham aumentado drasticamente. Como não admira que a Rússia tenha entrado na dança, disposta a defender a Ossétia (e todos os cidadãos aos quais concedeu passaportes russos) e a humilhar a Geórgia por suas pretensões ocidentalistas.
A guerra em curso pode ser uma tragédia para a Geórgia. Mas ela é uma derrota para um Ocidente cego de orgulho e paralisado, agora, perante a realidade.

 
2. Morreu Alexander Soljenítsin (1918-2008). Pena. Li "Arquipélago Gulag", anos atrás, e o que me impressionou na obra foi o tom do autor. Tal como na prosa autobiográfica do húngaro Imre Kertész, sobrevivente do Holocausto e Nobel em 2002, o texto de Soljenítsin é seco e sarcástico na descrição dos horrores prisionais stalinistas.
Foi uma bomba. Publicado no Ocidente em plena década de 1970, o livro estilhaçou as últimas ilusões dos "idiotas úteis" pró-soviéticos. Que nem perante a evidência se calaram: no momento em que "Arquipélago" era publicado, começaram a fabricar algumas acusações a Soljenítsin com o propósito de desvalorizar seu trabalho.
Algumas dessas acusações foram repetidas, implícita ou explicitamente, no momento da morte. Primeiro: Soljenítsin era um reacionário czarista. Segundo: Soljenítsin era um fervoroso anti-semita. Terceiro: Soljenítsin abominava o Ocidente liberal.
Respondo às três: mentira, mentira, mentira. E aconselho o livro de Daniel J. Mahoney, "Aleksandr Solzhenitsyn: The Ascent from Ideology". O estudo é precioso para desmontar todas as acusações.
Primeiro: Soljenítsin era um reacionário czarista? Dificilmente. Melhor defini-lo como um conservador reformista, tal como o seu herói, Pëtr Stolypin, primeiro-ministro russo a partir de 1906.
Na interpretação de Soljenítsin, o reformismo conservador de Stolypin, se tivesse sido executado (ele foi morto em 1911), teria melhorado as condições de vida do campesinato e, sobretudo, impedido a revolução bolchevique seis anos depois.
O mesmo sobre o seu alegado anti-semitismo: a admiração de Soljenítsin pela cultura e religião judaicas era autêntica. O que Soljenítsin não tolerava era a forma desproporcional como os judeus, sobretudo a partir de 1860, começaram a aderir à causa revolucionária, renegando as suas origens culturais e religiosas.
Por último, Soljenítsin não tinha grande apreço pelo Ocidente liberal? Não simplifiquemos: Soljenítsin não apreciava o niilismo espiritual e ético do Ocidente liberal. Porque foi esse niilismo que levou uma manada generosa de intelectuais a elogiar um regime cuja brutalidade real eles ignoravam ou desconheciam. Touché!


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