|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
A moral e o abuso sexual infantil
Recentemente, a mídia norte-americana mais conservadora
-sobretudo a radiofônica- descobriu um artigo acadêmico publicado em 1998 e literalmente subiu num porco.
A pressão foi tal que um deputado introduziu uma resolução no
Congresso para condenar os
achados do artigo.
O texto em questão é acusado de
desculpar, ou mesmo encorajar, o
abuso sexual de crianças. Nada
menos.
Ele foi publicado pelo "Psychological Bulletin" (1998, vol. 124)
- órgão oficial da American
Psychological Association. É assinado por três psicólogos: B. Rind,
P. Tromovitch e R. Bauserman. O
título é rebarbativo: "A Meta-analytical Examination of Assumed Properties of Child Sexual
Abuse Using College Samples".
Traduzindo: "Um Exame Meta-Analítico das Propriedades Geralmente Aceitas do Abuso Sexual
Infantil usando Amostras de Estudantes Universitários".
Aqui algumas explicações. Primeiro: chama-se de "meta-análise" um trabalho que reúne pesquisas que já existem, podendo
assim chegar a novas interpretações dos dados ou mesmo descobrir tendências que não apareciam nas pesquisas originais.
Segundo: a propriedade do abuso sexual infantil mais geralmente
aceita é a idéia de que ele causaria
danos permanentes e intensos na
grande maioria das vítimas. Esta
propriedade é verificada cada vez
que tomarmos como amostra
adultos que se queixam das consequências psíquicas invalidantes
do abuso infantil.
Certamente, nestes casos, chegaremos à conclusão que o abuso é
sempre invalidante. Para evitar
esta distorção, os autores selecionaram então pesquisas cuja
amostragem eram estudantes
universitários não-patológicos.
O artigo chega às seguintes conclusões: 14% dos homens e 27%
das mulheres disseram ter tido experiências classificáveis como
abuso sexual infantil. A avaliação
dos efeitos dessas experiências é
mais negativa para as mulheres
do que para os homens.
De qualquer forma, no que concerne aos efeitos negativos duradouros destes supostos traumas
sexuais, o abuso parece, do ponto
de vista dos sujeitos entrevistados,
responder por apenas 1% dos problemas que eles têm.
Conclusão do estudo: a propriedade mais geralmente aceita do
abuso sexual infantil, ou seja, a
idéia de que ele produz danos graves e duradouros, é discutível.
Ora, não estou convencido de
que o artigo constitua a última
palavra na matéria.
Mas a reação contra ele me deixa ainda mais perplexo do que o
artigo em si. Ela mostra, mais
uma vez, que a questão da sexualidade infantil não está longe de
onde Freud a encontrou. Na modernidade, as crianças são o baluarte de nosso narcisismo: queremos, sobretudo, que elas nos devolvam uma imagem de felicidade que compense nossas dores e
frustrações. Portanto, no começo
parecia bom mantê-las bem afastadas dos transtornos do sexo.
Ora, sobretudo nas últimas décadas, nossa idéia de felicidade
começou a incluir necessariamente a felicidade sexual. Se ser feliz é
também ser feliz na cama, como
fica a relação das crianças com esta dimensão da felicidade?
A atitude contemporânea frente
à sexualidade infantil é, portanto,
uma aguda contradição entre a
vontade de sexualizar as crianças
e, paradoxalmente, uma renovada negação da sexualidade infantil. Por um lado, gostamos de
transvestir as crianças em adultos
sedutores. Por outro lado, não
queremos nem saber da existência
de um desejo sexual infantil.
Achamos graça em meninas de
minissaia e batom. Baixamos as
luzes em ridículas festas dançantes para crianças de 8ª série. Mas,
quanto mais sexualizamos assim
nossas crianças, tanto mais nos
tornamos paranóicos em defendê-las do sexo.
Preferimos, aliás, supor que o sexo vem às crianças só pelo caminho da violência de adultos corruptores. As "nossas" crianças
não desejam, não têm fantasias,
são sempre os outros que lhes fazem a cabeça para aproveitar de
seus corpos. É verdade. Só que os
ditos outros, para começar, somos
nós mesmos.
Esta ambivalência é responsável
pela fraqueza moral que é evidente na indignação contra o artigo
do "Bulletin". Como isso? Simples:
os censores se indignam porque o
artigo sugere que o abuso sexual
infantil poderia não acarretar
consequências danosas duradouras. Ou seja, eles receiam que, se o
abuso não for danoso, será difícil
provar que ele é errado.
Ora, nem tudo que é errado moralmente é nocivo ou patógeno. E,
reciprocamente, nem tudo o que é
patógeno é necessariamente errado moralmente. Comer carne gorda pode aumentar o colesterol,
mas não é (ainda) um pecado. Assim, o abuso sexual infantil pode
não ser nocivo apesar de errado
moralmente.
Na ausência de raios divinos, é
pedida uma confirmação prática
do juízo moral. Para que as condutas sejam moralmente "erradas" é preferível, em suma, que sejam danosas para a saúde; física
ou mental.
É mais uma prova da fraqueza
do caráter contemporâneo: uma
falta de confiança na autonomia
do juízo moral.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Brasileiros assimilaram estilo Próximo Texto: Show: Orbital vem tocar no Free Jazz 99 Índice
|