São Paulo, Quinta-feira, 12 de Agosto de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
A moral e o abuso sexual infantil

Recentemente, a mídia norte-americana mais conservadora -sobretudo a radiofônica- descobriu um artigo acadêmico publicado em 1998 e literalmente subiu num porco.
A pressão foi tal que um deputado introduziu uma resolução no Congresso para condenar os achados do artigo.
O texto em questão é acusado de desculpar, ou mesmo encorajar, o abuso sexual de crianças. Nada menos.
Ele foi publicado pelo "Psychological Bulletin" (1998, vol. 124) - órgão oficial da American Psychological Association. É assinado por três psicólogos: B. Rind, P. Tromovitch e R. Bauserman. O título é rebarbativo: "A Meta-analytical Examination of Assumed Properties of Child Sexual Abuse Using College Samples".
Traduzindo: "Um Exame Meta-Analítico das Propriedades Geralmente Aceitas do Abuso Sexual Infantil usando Amostras de Estudantes Universitários".
Aqui algumas explicações. Primeiro: chama-se de "meta-análise" um trabalho que reúne pesquisas que já existem, podendo assim chegar a novas interpretações dos dados ou mesmo descobrir tendências que não apareciam nas pesquisas originais.
Segundo: a propriedade do abuso sexual infantil mais geralmente aceita é a idéia de que ele causaria danos permanentes e intensos na grande maioria das vítimas. Esta propriedade é verificada cada vez que tomarmos como amostra adultos que se queixam das consequências psíquicas invalidantes do abuso infantil.
Certamente, nestes casos, chegaremos à conclusão que o abuso é sempre invalidante. Para evitar esta distorção, os autores selecionaram então pesquisas cuja amostragem eram estudantes universitários não-patológicos.
O artigo chega às seguintes conclusões: 14% dos homens e 27% das mulheres disseram ter tido experiências classificáveis como abuso sexual infantil. A avaliação dos efeitos dessas experiências é mais negativa para as mulheres do que para os homens.
De qualquer forma, no que concerne aos efeitos negativos duradouros destes supostos traumas sexuais, o abuso parece, do ponto de vista dos sujeitos entrevistados, responder por apenas 1% dos problemas que eles têm.
Conclusão do estudo: a propriedade mais geralmente aceita do abuso sexual infantil, ou seja, a idéia de que ele produz danos graves e duradouros, é discutível.
Ora, não estou convencido de que o artigo constitua a última palavra na matéria.
Mas a reação contra ele me deixa ainda mais perplexo do que o artigo em si. Ela mostra, mais uma vez, que a questão da sexualidade infantil não está longe de onde Freud a encontrou. Na modernidade, as crianças são o baluarte de nosso narcisismo: queremos, sobretudo, que elas nos devolvam uma imagem de felicidade que compense nossas dores e frustrações. Portanto, no começo parecia bom mantê-las bem afastadas dos transtornos do sexo.
Ora, sobretudo nas últimas décadas, nossa idéia de felicidade começou a incluir necessariamente a felicidade sexual. Se ser feliz é também ser feliz na cama, como fica a relação das crianças com esta dimensão da felicidade?
A atitude contemporânea frente à sexualidade infantil é, portanto, uma aguda contradição entre a vontade de sexualizar as crianças e, paradoxalmente, uma renovada negação da sexualidade infantil. Por um lado, gostamos de transvestir as crianças em adultos sedutores. Por outro lado, não queremos nem saber da existência de um desejo sexual infantil.
Achamos graça em meninas de minissaia e batom. Baixamos as luzes em ridículas festas dançantes para crianças de 8ª série. Mas, quanto mais sexualizamos assim nossas crianças, tanto mais nos tornamos paranóicos em defendê-las do sexo.
Preferimos, aliás, supor que o sexo vem às crianças só pelo caminho da violência de adultos corruptores. As "nossas" crianças não desejam, não têm fantasias, são sempre os outros que lhes fazem a cabeça para aproveitar de seus corpos. É verdade. Só que os ditos outros, para começar, somos nós mesmos.
Esta ambivalência é responsável pela fraqueza moral que é evidente na indignação contra o artigo do "Bulletin". Como isso? Simples: os censores se indignam porque o artigo sugere que o abuso sexual infantil poderia não acarretar consequências danosas duradouras. Ou seja, eles receiam que, se o abuso não for danoso, será difícil provar que ele é errado.
Ora, nem tudo que é errado moralmente é nocivo ou patógeno. E, reciprocamente, nem tudo o que é patógeno é necessariamente errado moralmente. Comer carne gorda pode aumentar o colesterol, mas não é (ainda) um pecado. Assim, o abuso sexual infantil pode não ser nocivo apesar de errado moralmente.
Na ausência de raios divinos, é pedida uma confirmação prática do juízo moral. Para que as condutas sejam moralmente "erradas" é preferível, em suma, que sejam danosas para a saúde; física ou mental.
É mais uma prova da fraqueza do caráter contemporâneo: uma falta de confiança na autonomia do juízo moral.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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