São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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MÚSICA

Cantora é primeira artista do gênero a lançar CD por grande gravadora

"Guerreira" Negra Li fura barreira do hip hop

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Um dia, já faz alguns anos, Liliane de Carvalho colocou sua melhor roupa e foi procurar emprego. Pensava ter se saído bem na entrevista, até que ouviu a entrevistadora comentando entre dentes com outra pessoa: "Ah, mas tem que ser bonita".
"Feia eu não sou, pelo amor de Deus. Quem é preconceituoso não enxerga a beleza do negro", avalia hoje, quando não é mais Liliane de Carvalho, mas, sim, Negra Li. Negra Li é alta, magra, negra e bonita. Deixou de ser Liliane ao se integrar ao movimento hip hop, pelos braços do trio RZO, liderado por seu parceiro Hélio Barbosa dos Santos, ou Helião.
Baiano radicado em São Paulo desde bem pequeno, Helião, 35, mora em Pirituba, perto de Negra Li, 24, habitante da Brasilândia desde que nasceu. Sempre viveram na periferia norte de São Paulo, mas hoje se locomovem também pelo centro simbólico não só da cidade, mas do Brasil.
Negra Li é a primeira mulher do rap a ser contratada por uma grande gravadora (a Universal) no país. O disco de estréia deve sair só no final do mês, mas a música de abertura, "Guerreiro & Guerreira", já freqüenta a novela global das 19h, como tema de uma personagem também de periferia, vivida por Thalma de Freitas, também negra, também cantora.
No final desta semana, Negra Li e Helião inauguram a nova fase ao vivo em grandes palcos de São Paulo e do Rio, abrindo os shows do rapper norte-americano 50 Cent no Brasil, no Pacaembu.
Aquela Liliane que era tida como feia por ser negra ainda mora em Negra Li, que reage à idéia de que as coisas vêm melhorando, no que diz respeito ao preconceito racial. "Para mim, que sou negra, não mudou nada. Nunca vi uma negra apresentando programa infantil na TV, as crianças ficam com a imagem de anjinho loiro enquanto negro é só marginal e menino de rua", protesta.
Conta outro caso: "Tenho primas que são preconceituosas com elas mesmas, acham que a beleza branca é maior. Elas têm a pele mais negra que a minha, dizem "Nossa, que pele linda". Mas, puxa, eu é que acho a pele delas linda! Detesto quando me dizem "que morena" na rua. Não sou morena, eu sou negra".

Rejeição
Uma história puxa outra. Pequena, ganhou bolsa e foi estudar em escola particular. "Eu gostava de um menino que era negro, ele ficava com todas as meninas brancas, mas não comigo."
Ela não entendia, mas acaba explicando por si só a rejeição: "Falta um pouquinho de vaidade que a gente não aprendeu a ter. A branquinha da classe média imita a mãe desde pequena. A gente não aprende a se maquiar, cresce moleque, chamada de maloqueira, sem auto-estima".
Com histórias assim povoando seu imaginário, a ex-Liliane se esforça por não entrar num perverso conto de cinderela negra, desses de programa dominical de televisão. Ela própria tem freado a ascensão desde ao menos 2000, quando despertou primeiras atenções ao participar do hit pop "Não É Sério", do grupo santista Charlie Brown Jr.
"Primeiro Chorão mandou uma fita com um rap muito feio, sem assunto definido, falei "Nossa, o que é isso?'", rememora. Acabou criando "um espacinho" no final de "Não É Sério".
À época dessa primeira "revelação" (na periferia, já cantava com o RZO desde 1997), chegou a ser procurada por gravadoras, mas resistiu -em parte por autonomia, em parte por influência.
"Não me sentia preparada, também fui muito induzida a não ir pelo namorado que tinha na época. O rap todo tem uma idéia de que gravadora grande vai prender você, tirar dinheiro de você, obrigar você a fazer o que eles querem", descreve. "Hoje me surpreende muito a liberdade que a gravadora tem nos dado. Mas em 2000 eu era muito menina, poderia ter sido aquilo mesmo se eu não esperasse."
Em 2000, a menina preferiu continuar correndo atrás de si própria. Foi estudar na escola Groove, na rua Oscar Freire, no rico bairro dos Jardins. Seu gosto pelo canto, adquirido na igreja (leia texto nesta página), ajudou a moldar um rap mais melódico, de exposição vocal que vai além do canto-fala do hip hop.
Algo desavisado, Helião comenta a afronta que isso pode representar: "O jovem hoje acha meio brega cantar um Tim Maia, um Ed Motta, um sertanejo. Cantar como Negra Li faz é mais raro". "Meu professor fala que hoje em dia não existe mais música. Estudo jazz, samba, MPB, é uma escola de música e de vida", sonha ela, na mão e na contramão.
Ainda pouco conhecida, ela desdenha fama e sucesso com ironia, mas também com alguma irritação, ou susto. "Antes mesmo de ser conhecida, famosa e rica, já acontecem coisas muito chatas. Sou uma pessoa comum que lida com música, se num dia estou chata ou mais quieta, então estou chata, pronto."
Exemplo? "Já cheguei em casa chorando muitas vezes, porque ficam me perguntando de tudo no ônibus e eu não consigo responder direito, encerro o assunto, me irrito. Não queria ter tratado mal, mas depois que fiz não me sinto bem. Mas quem disse que a gente tem que ser sempre legal?"
Em 2004, a mudança no comportamento arredio diante de grandes gravadoras resulta num outro dado inusitado: admirador de Negra Li e dos RZO, o mais arredio ainda Mano Brown participa da faixa "Periferia". "Não foi preciso convencer, foi quase um pedido dele para participar", gaba-se a cantora.
"Somos pretos, loucos, filho de baiano, devotos do rap", improvisa Mano Brown ao final de "Periferia", após um refrão melódico em que a anticinderela proclama que "se tem algum lugar periferia já está ganhando". Já está?


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