São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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CRÍTICA

A perfeição toma o lugar da lei em série

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

O cinismo é certamente uma marca do nosso tempo e, na TV, a plasticidade de seus formatos é assustadora. O diabo é que muitas vezes aquilo que não passa de cinismo em estado bruto, avançado e algo até já putrefato, é tomado por "crítico", "realista" etc.
Tome-se "Nip/Tuck", série que estreou mês passado no canal pago Fox e já está em sua segunda temporada nos EUA, por exemplo. Ela gira em torno de dois cirurgiões plásticos beirando os 40.
Sócios de uma clínica bem-sucedida, um deles é bonitão, solteiro, galinha, ambicioso e algo desatento com os bisturis; o outro é sério, tem escrúpulos e problemas familiares. No formato consagrado pelos filmes e seriados policiais, a tensão entre as duas personalidades é o motor das tramas.
Os conflitos entre os dois contrapõem tentativas tímidas de estabelecer limites éticos de um com a ambição absolutamente crua da medicina estética como negócio do outro.
Do lado dos escrúpulos, o sujeito mediano, desprezado pelo filho adolescente e que é um fracassado na vida sexual e amorosa, do lado da barbárie, o vencedor ao estilo norte-americano: bem-sucedido com as mulheres e com o dinheiro, seguro, confiante etc. Não é nem preciso dizer com qual é o personagem mais carismático, que suscita mais identificação etc.
O cinismo, nesse caso, faz o papel da cenoura para atrair aquela parcela do público que se imagina acima do primarismo da TV. Um truque e, nesse sentido, até muito bem feito -para atrair os espectadores que imaginam estar assistindo uma coisa, mas estão vendo o de sempre.
Há um segundo truque, e esse é ainda mais repugnante do que as cenas grotescas de cirurgias, outro dos atrativos da série. Como na política externa norte-americana, é preciso se unir contra o inimigo. Os dois médicos, em que pesem as suas diferenças e divergências, acabam sempre se juntando na hora do perigo que vem de fora. Diante do inimigo, aquilo que um ou outro tenha feito de errado, de mesquinho, de cruel, desaparece, por que sempre aquele que vem de fora é mais do mal.
É essa a ameaça que tudo explica e tudo justifica, no fundo. Não importa que o médico mais monstro seja sexista, irresponsável, ganancioso, porque lá fora -e a série se passa em Miami, uma das fronteiras dos EUA com o "lá fora"- eles são piores. E muito mais feios.
Sim, porque onde a série pretende ser "crítica", ou seja, na obsessão doentia do mundo moderno com a aparência, ela se torna ainda mais reforçadora de estereótipos. A cirurgia plástica é, afinal, regida por uma série de fôrmas narizes, seios, pálpebras, queixos, abdomens, tudo deve se encaixar numa forma ideal -e de pressupostos de perfeição. Em "Nip/Tuck", a perfeição e as fôrmas da beleza tomam o lugar da lei e os cirurgiões são seus guardiões. Para o bem e para o mal.

biabramo.tv@uol.com.br



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