São Paulo, sexta-feira, 12 de outubro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

A mão do homem e o medo da moça

Siga em frente e não olhe para trás. Não é uma ordem, nem mesmo um conselho. É um pedido, quase uma súplica. Não, o homem não está desesperado. Tem apenas a fadiga do tempo, tragando com sua boca medonha o nada, o nada que o próprio tempo cria, alimenta e consome.
Quando era criança (o homem foi criança sem saber que um dia se transformaria em homem), ele imaginava o tempo parado, como uma nuvem bojuda e branca que não saía do lugar, parecendo imóvel e imensa no céu.
Esquecia a nuvem e, quando olhava novamente para cima, não havia mais nuvem, ou havia outra no lugar da primeira. Era um novo tempo que nada tinha a ver com o tempo anterior. Olhar as nuvens era uma distração e, ao mesmo tempo, uma advertência. Todas se parecem e são desiguais. Dentro delas não há nada, como nada há dentro do tempo.
A criança cresceu, como a nuvem mudou muito, mudou tudo, mas continuou o mesmo. Só que não olhava mais para as nuvens, elas não o distraíam. E isso de ficar olhando nuvem poderia parecer uma fuga idiota, missão sem sentido, embora nenhuma missão tivesse sentido para o homem.
Foi então que ela apareceu -não a nuvem, mas a moça que, sentada a seu lado no avião, de repente tremeu e disse que tinha medo, o aparelho enfrentava uma turbulência, mergulhara numa nuvem feita de nada, e tudo tremia, a moça tremia e segurava com força os braços da poltrona, na ilusão de que estaria salva. Uma vibração maior, o avião pareceu cair alguns metros, uma passageira lá atrás não conseguiu evitar um começo de grito.
A moça pareceu aliviada porque outra pessoa tivera a lucidez de gritar e ela não, mas continuava a tremer e, quando a turbulência aumentou, procurou a mão do homem, que desde o início da viagem parecia dormir, alienado e poderoso a seu lado.
O homem compreendeu, apertou a mão da moça e disse apenas: ""Não tenha medo. É apenas uma nuvem".
Não adiantou. A moça segurou a mão do homem com força, perguntou se a turbulência ia demorar muito -e o homem nem precisou responder, o avião acabara de varar a nuvem e mergulhara na luz dourada que descia do céu novamente azul.
Ela suspirou, largou a mão do homem, não estava envergonhada do medo, mas aliviada de não precisar mais daquela mão e daquele homem ali ao lado. Mesmo assim, depois de um instante em que olhou pela janela e viu que não havia mais nuvens no céu, achou conveniente agradecer: ""Obrigada".
O restante da viagem foi tranquilo. A moça aceitou um café que a comissária de bordo serviu. O homem voltou a fechar os olhos, aparentemente dormindo ou tentando dormir. A moça apreciou o sono do homem. Seria pior se, após a turbulência, após agarrar aquela mão que a protegeu tão precariamente, ele aproveitasse o incidente para dizer coisas. De olhos fechados, ele parecia ter esquecido a mão da moça e a própria moça.
O que a incomodava era justamente isso: ela não conseguia esquecer a mão do homem. Podia observá-la livremente, de olhos fechados ele não perceberia que ela examinava sua mão.
Mão que nem era bonita, pequena demais, dedos um pouco curtos e tortos, e foi aí que a moça suspeitou que o homem era bem mais velho do que ela, tinha a mesma mão de seu pai, tinha a mesma mão dos homens mais velhos. Até mesmo as manchas escuras e as veias um pouco murchas, pelas quais corre um sangue fatigado e triste.
A moça tentava esquecer a mão do homem, mas não conseguia. Descobriu que estava com vontade de segurar aquela mão novamente, mesmo sem turbulência, sem nuvem afogando o avião e obrigando-o a tremer.
O comandante avisou que iniciava o procedimento de pouso. As condições do aeroporto eram boas, temperatura moderada, mais dez minutos e a viagem chegaria ao fim.
Dez minutos não são dez anos. Mas também não são dez segundos. Pode-se fazer muita coisa em dez minutos. Na véspera, ela acabara de ler ""O Vermelho e o Negro", de Stendhal. Condenado à morte, Julien Sorel diz à mulher que o pouco tempo de vida que ainda lhe resta é muito para que eles possam ser felizes.
A moça segurou a mão do homem. Foi tão repentino, tão inesperado e, ao mesmo tempo, tão inevitável, que o homem nem abriu os olhos, continuou dormindo ou fingindo dormir. A moça pegou a mão do homem, a mão cansada do homem.
Não sabia o que fazer com aquela mão em sua mão. Pensou em beijá-la, seria ridículo, sentimental, cafona. Olhou em torno, os passageiros estavam entregues a si mesmos, ninguém se preocupava com ninguém.
Então a moça colocou a mão do homem no seio esquerdo dela. Todos elogiavam os seus seios, eram realmente bonitos, grandes, como estavam em moda, e assustados, porque o seu peito havia experimentado o medo. O homem não tirou a mão do seio dela. Quando os demais passageiros se levantaram, a moça hesitou se devia esperar pelo homem que afagara o seu medo e o seu seio.
De olhos fechados, o homem disse baixinho: ""Siga em frente e não olhe para trás".



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