São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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RODAPÉ

Hungria tem outros autores tão bons quanto Imre Kertész

NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA, EM PARIS

O romancista húngaro Imre Kertész ganhou esta semana o primeiro Nobel literário de seu país. Prêmios são prêmios, ou seja, descontando o cheque de mais ou menos US$ 1 milhão (que, aliás, não é um desconto qualquer), o juízo literário da Academia Sueca é apenas mais uma opinião. Não há entre os acadêmicos suecos nenhum crítico ou literato cujas escolhas, desassociadas do prestígio da "grife", seriam levadas particularmente a sério fora da Escandinávia.
Se é verdade que os atuais jurados, bem como seus predecessores, colecionaram mais erros do que acertos, ainda assim, quando acertam, o fato é importante. Pois os erros se corrigem por conta própria (através do esquecimento), enquanto um prêmio desses consegue às vezes divulgar seja alguém que corria o risco de ficar confinado a um público restrito, como Elias Canetti ou Czeslaw Milosz, seja a literatura de algum país menos conhecido, como, no caso presente, a da Hungria.
Há um longo e provavelmente ocioso debate no qual se busca determinar se os húngaros e seus vizinhos tchecos e poloneses pertencem, com a Alemanha e a Áustria, à Europa Central, ou à do Leste, em companhia de romenos, ucranianos e russos.
Seja como for, uma coisa é certa: as línguas nas quais os povos desconfortavelmente comprimidos entre Alemanha e Rússia escrevem não são muito conhecidas ou estudadas fora da região, e suas literaturas tampouco têm sido generosamente apresentadas nos idiomas mais frequentados.
É uma pena. Seus melhores autores, talvez menos numerosos, de modo nenhum se eclipsam diante dos grandes escritores ocidentais. Se a premiação de Kertész contribuir não só para reavivar um pouco a memória (que anda fraca) dos europeus a respeito de sua história recente, como também para pôr o trabalho de seus conterrâneos em circulação, esta terá sido uma homenagem útil. E não só para a Hungria.
Os que falam o idioma dos magiares (que é como os húngaros se chamam na própria língua) sabem que, apesar de alguns bons pintores, vários excelentes compositores (sobretudo Béla Bartok) e ótimos romancistas, o que o país fez de melhor foi sua poesia.
Não adianta alinhavar nomes difíceis e desacompanhados dos textos capazes de comprovar seu nível. Basta dizer que a poesia húngara se enraíza, por um lado, na antiquíssima tradição oral e pagã dos idiomas com os quais mantém parentesco, já que a língua não pertence à família indo-européia, mas sim à fino-ugriana dos finlandeses, estonianos e de vários outros pequenos povos dispersos pelo norte da Eurásia, principalmente na Sibéria.
Por outro lado, ela se abriu, desde a Idade Média, à riqueza das influências européias e, a partir do século 19, também das universais. O resultado foi a obra de uma boa dúzia de poetas soberbos, cujo renome só não rivaliza com o daqueles que escreveram nas línguas (por assim dizer) imperiais porque boas traduções de poesia são sempre raras.
Nem por isso são secundários ou irrelevantes os prosadores do país. A ficção húngara, que é relativamente recente, alcançou uma estatura internacional apenas no século 20. Foram os escritores agrupados em torno da revista "Nyugat" ("Ocidente"), que, fundada antes da Primeira Guerra, sobreviveu até a segunda, aqueles que produziram os primeiros grandes romances e contos do país. Entre os melhores dessa geração encontravam-se Gyula Krúdy (1878-1933), Zsigmond Móricz (1879-1942) e Dezsö Kosztolányi (1885-1936), todos bem representados nas duas deliciosas antologias de contos que Paulo Rónai traduziu para o português.
Depois deles, as três ou quatro gerações seguintes se beneficiaram de seu legado de inovações estilísticas, apetência ou mesmo voracidade temática, profundidade histórica e percepção psicológica, além de pura e simples competência narrativa.
A Hungria entrou na era moderna como sócia menor da Monarquia Austro-Húngara, saiu perdedora da Primeira Guerra, cujo veredicto lhe amputou dois terços do território e cerca de metade da população, distribuindo-os entre as nações vizinhas, sofreu o impacto das crises do entreguerras e de uma ditadura fascistizante, aliou-se ao lado errado durante a Segunda Guerra, foi ocupada sucessivamente por alemães e russos, amargou meio século de despotismo político e desastre econômico sob o regime comunista, e não foi antes de 1989 que recomeçou a experimentar o que, em lugares mais felizes, chamam de normalidade. Assim, se há algo de que os seus escritores nunca puderam reclamar, é da falta de assuntos suficientemente graves ao alcance da mão e, não raro, do pescoço.
Ter conseguido dar criativamente conta de tal excesso indigesto de história não é a menor das qualidades da prosa que escrevem hoje em dia, uma prosa que, mesmo quando submetida a coerções variadas, se conservou esteticamente em forma. Daí ser Imre Kertész um autor tão bom quanto, mas não necessariamente melhor do que alguns outros de um grupo talentoso cujos participantes, como Péter Esterházy, Péter Nádas, György Konrád e György Spiró, cada qual acessível em inglês, francês, espanhol e alemão, merecem, todos, uma atenção pelo menos igual.


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