São Paulo, terça-feira, 12 de outubro de 2004

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ANÁLISE

É hora de reexaminar, sem "Zélias", valor de sua literatura

HUMBERTO WERNECK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Menino precoce que publicou o seu primeiro conto aos 12 anos de idade, Fernando Tavares Sabino conheceu muito cedo a notoriedade. Já era ganhador contumaz de concursos literários ao estrear em livro aos 17, com os contos de "Os Grilos Não Cantam Mais". Aos 21, recebeu de Mario de Andrade, a quem enviara os originais da novela "A Marca", um elogio de grosso calibre: "Você está escrevendo tão bem como Machado de Assis!".
Pouco depois, ainda na faixa dos 20, começou a brilhar na crônica, gênero tipicamente brasileiro do qual viria a ser um dos mestres e renovadores, ao lado de Rubem Braga e Paulo Mendes Campos. Mal entrado nos 30, consagrou-se também como romancista, com aquele que seria o seu livro mais importante, "O Encontro Marcado".
Amado pelos leitores e festejado pela crítica, inquilino freqüente das listas de mais vendidos, requisitado o tempo todo para falar de sua obra, nada indicava que a sorte de Fernando Sabino fosse mudar, como mudou, aos 68 anos.
Entrou em moda desancá-lo sem maior cerimônia, como escritor mas também como pessoa, tão logo chegou às livrarias, em 1991, o best-seller "Zélia, uma Paixão", biografia autorizada de Zélia Cardoso de Mello, ex-ministra da Economia do governo Collor. "Mercenário" foi o mínimo que se disse então de Sabino.
Não faltam defeitos pesados a "Zélia, uma Paixão". Mal apurado, escrito às pressas e, sobretudo, parcial, por se tratar de biografia autorizada, é certamente o momento menos feliz da obra do escritor. Mas não foi por isso que ele foi tão malhado. Na balança preconceituosa da maioria dos críticos, poucos dos quais terão lido esse mau livro, pesou mais a escolha da personagem.
"Zélia" confiscou a poupança literária de Fernando. Desde então, o escritor praticamente desapareceu do circuito. Parou de dar entrevistas. Desistiu das noites de autógrafos.
Mas não parou de produzir, e começou a desovar o que, com bom humor, chamou de "obra póstuma antecipada". Registrou em cartório sua vontade de que, uma vez morto, se publicasse apenas aquilo que ele em vida tivesse posto em livro.
Nessa cuidadosa limpeza de gaveta vieram a sua correspondência com Clarice Lispector, amiga de juventude, e as cartas a Mario de Andrade, além da deliciosa miscelânea de "Livro Aberto", e, este ano, do romance inédito "Movimentos Simulados", que ele havia escrito aos 22.
Publicou também uma seleta de suas cartas a Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Helio Pellegrino - o grupo que Otto batizou de "os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse". A reclusão de Sabino, aliás, se explica também pela morte progressiva dos amigos: Helio em 88, Paulo em 91, Otto em 92. Desse quarteto mitológico, transparente na primeira parte de "O Encontro Marcado", ficou todo um folclore - e um LP duplo, "Os 4 Mineiros", gravado em 1980, que já seria hora de reeditar.
Seria hora, também, de reexaminar, sem Zélias nem paixões, o que foi a contribuição de Fernando Sabino para a literatura brasileira. Ele pode não estar na prateleira mais alta, habitada por Guimarães Rosa, Machado de Assis e outros raros exemplos - mas poucos terão sido, como ele, mestres na arte de contar histórias curtas. Exercitou-a em mais de uma dúzia de coletâneas, cujo ponto alto talvez esteja em "O Homem Nu", de 1960.
Sua prosa sem enfeites, carregada de bom humor, capaz de dizer muito com um mínimo de meios, foi, é e continuará sendo uma escola magnífica para quem começa a escrever ficção ou jornalismo - além de prazer certo para quem busca uma boa história.
Há algo ainda melhor nas páginas de "O Encontro Marcado". Romance de formação e obra-prima de Sabino, o livro atravessou quase meio século sem perder o viço e segue falando a sucessivas gerações.


Humberto Werneck, 58, é jornalista e escritor, autor do livro "O Desatino da Rapaziada" (Companhia das Letras) e organizador do volume "Minérios Domados" (Rocco), de Helio Pellegrino


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