São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 2006

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Memórias do inferno

"Crônica de uma Fuga", que estréia hoje, narra a história de quatro desaparecidos durante o regime militar argentino

Divulgação
O ator Nazareno Casero no papel de prisioneiro da temida Mansión Seré; no detalhe, Adrián Caetano nas filmagens


DENISE MOTA

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE MONTEVIDÉU

Por meses, eles passaram por todo tipo de tortura, foram serventes, bodes expiatórios e objeto de sádicas sessões de entretenimento para o "grupo de tarefas" do regime militar argentino. No entanto, nem o terror em que estiveram mergulhados, nem o abatimento provocado pelas pancadas foram suficientes para que desaparecessem. Por isso foram escolhidos por Adrián Caetano como tema de seu mais novo filme, "Crônica de uma Fuga", que estréia hoje no Brasil.
"Interessam-me os sobreviventes", diz o diretor uruguaio de 37 anos em entrevista à Folha, por telefone, de Buenos Aires, onde mora. "Este é um continente sem heróis, vivemos amedrontados. Estamos em uma sociedade onde não há liberdade real, e essas pessoas são, para mim, o exemplo mais claro de heroísmo que pode haver. São mais autênticas."
Baseado em "Pase Libre - La Fuga de la Mansión Seré", escrito por Claudio Tamburrini, o filme aborda os anos da ditadura argentina (1976-1983), por meio da história de quatro jovens que escaparam em 1978 da Mansión Seré, ou Casa do Terror -centro de detenção clandestino instalado num casarão da Força Aérea Argentina, na periferia de Buenos Aires.
Tamburrini (Rodrigo de la Serna), à época com 23 anos e goleiro de um pequeno time de futebol, foi levado à Seré "ao redor das 12h30 de 23 de novembro de 1977", conforme declararia em juízo em 1985.
Sua prisão foi fruto da manobra atrapalhada de um conhecido, que cedeu aleatoriamente nomes de gente sem vínculos com os guerrilheiros para que companheiros de militância tivessem tempo de sair do país.
Desesperado, o até então atleta começa a vislumbrar, no cárcere improvisado, a loucura metódica de algozes e vítimas.
Após 120 dias de pesadelo, decide fugir com mais três companheiros. E, numa noite de tempestade eles saltam pela janela para aquilo que pode ser a liberdade ou a morte.

Verossimilhança
Como em "Un Oso Rojo" (2002), quando abordou a volta de um ex-detento à vida comum, Caetano concentra a câmera sobre a figura humana submetida à privação da liberdade, tema que já havia explorado antes em "Tumberos" ("presidiários" na gíria portenha), série que criou e dirigiu com êxito na televisão argentina há quatro anos.
"Gosto de trabalhar com o verossímil, com o que vai sendo montado na cabeça do espectador. Meu cinema é simples, sem a necessidade de mostrar que há um autor por trás."
"Crônica de uma Fuga" estreou em abril na Argentina, um mês após se completarem três décadas da instalação do regime militar no país, num momento em que o assunto anda sendo bastante debatido até em uma telenovela. Coincidentemente, a estrela desse folhetim, batizado de "Montecristo", é Pablo Echarri, também um dos atores centrais no longa de Caetano, no qual interpreta o chefe das tarefas da Casa do Terror.
"Se o filme desencadear mais debate, que seja bem-vindo, mas não fiz "Crônica" pensando nisso", diz o cineasta, que se programa para iniciar, em 2007, as filmagens de mais uma história de "tumberos": a fuga do presídio uruguaio de Punta Carretas (hoje um shopping center), em 1971, quando 111 pessoas escaparam por um túnel que desembocava na sala de estar de uma residência.
"Sou bastante cético em relação a todo esse debate que está tendo lugar na Argentina a respeito da ditadura. Desconfio de toda essa mobilização, me parece estranho que tudo isso esteja aflorando nesse momento", diz. "Agora mesmo temos um desaparecido em plena democracia", lembra o diretor, em referência ao pedreiro Jorge Julio López, 77, uma das testemunhas-chave do julgamento que condenou à prisão Miguel Etchecolatz, ex-oficial da polícia durante o regime militar argentino e responsável, entre outros, por cerca de 30 centros clandestinos de detenção.
López desapareceu há 24 dias, e o governo de Buenos Aires está oferecendo uma recompensa de 200 mil pesos (cerca de R$ 138.550) por informações, mas até agora o paradeiro da testemunha permanece ignorado. "As coisas não mudaram", afirma Caetano.


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