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CONTARDO CALLIGARIS
Outdoors ou não
Odiando a publicidade, tentamos exorcizar a futilidade de nosso próprio consumismo
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NUMEROSOS LEITORES me escreveram comentando minhas últimas colunas, nas
quais tratei do vídeo de Daniella Cicarelli e da nova lei da Prefeitura de
São Paulo, que proíbe os outdoors
publicitários no município. Tento
responder.
Sobre o vídeo, uma observação:
concordo, transar no meio da praia
constitui uma ofensa ao pudor de
quem não está a fim de assistir ao espetáculo. Ora, no meio da praia, Daniella e seu namorado só se beijaram
e abraçaram. Como assinala o vídeo,
o resto ocorreu numa área afastada:
uma teleobjetiva foi necessária para
filmar o casal. Imagine que, com um
telescópio, você espie uma transa
que acontece num prédio situado a
200 metros de sua janela. Você se
sentirá insultado pela "exibição"?
"Fala sério!"
Mas quero voltar à nova lei da Prefeitura de São Paulo e evitar alguns
mal-entendidos (enviarei a íntegra
da lei aos leitores que a solicitarem).
1) Acharia ótima a idéia de uma regulamentação básica dos outdoors
publicitários (de sua localização, de
seu tamanho etc.), mas a lei não propõe uma regulamentação: ela decide
a abolição de todos os outdoors.
Quanto aos "anúncios indicativos"
(o letreiro com o nome de uma loja,
o programa de um teatro etc.), ela
propõe uma regulamentação tão
complexa que eu não consegui estabelecer se a padaria de minha esquina deverá ou não reformar seu letreiro. Aviso: a complexidade das regulamentações é, tradicionalmente,
um convite à corrupção; quando
ninguém entende direito o que pode
e o que não pode, alguém acaba pagando para que o deixem em paz.
2) No caso dos anúncios publicitários, a lei funciona exatamente como a repressão psíquica. Por não
querer ou conseguir diferenciar, ela
proíbe tudo (é o abc do sintoma neurótico: para coibir minha "devassidão" sexual, quero mesas e cadeiras
sem "pernas", nenhum objeto de
"pau", nada de "sainha" nas camas...aliás, "cama" já é uma palavra suspeita).
Por outro lado, a lei (que projeta
melhorar a paisagem urbana) propõe uma diversão: proíbe uma coisa
para que a gente se esqueça de outras (que, no caso, dependem do poder público).
Espreitando a aparição
de um dirigível publicitário (que será proibido), talvez você não veja o
incrível emaranhado dos fios das ligações elétricas que "ornamentam"
nosso céu ou não perceba a nuvem
de poluição que dá sua cor inconfundível ao pôr-do-sol paulistano. Indignado com o anúncio de um reparador de cadeiras, talvez você não
note o estado deplorável dos canteiros.
Uma conseqüência, não desejada
pelo autor da lei: sem letreiros luminosos e holofotes, perceberemos, isso sim, que a iluminação pública de
São Paulo é assustadoramente fraca.
Percorra a pé, de noite, a av. Faria Lima, vindo da Tabapuã em direção ao
Oeste; entrando à direita, na luz dos
restaurantes da rua Amauri, sua
pressão arterial melhorará singularmente.
4) Alguns leitores se preocupam
com nossos edifícios históricos. É
estranho: nunca vi outdoors publicitários escondendo o Municipal, a Pinacoteca ou a Estação da Luz. Em
compensação, pelo que entendi, o
Masp não poderá mais anunciar
suas exposições temporárias com
megatelões laterais que chamem a
atenção de quem transita de carro
pela Paulista.
5) A implementação da lei é prevista com total descaso pela vida de
muitos cidadãos. Em três meses,
sem transição, uma indústria de serviços será desmantelada (com a perda de milhares de empregos), aproximadamente cinco mil táxis não
disporão mais de uma pequena renda mensal suplementar e por aí vai.
6) É possível que a aprovação entusiasta da lei por muitos comentadores seja inspirada por princípios
estéticos sóbrios e adversos ao
"pop". Essa discussão fica para outra
vez.
Mas suspeito que a iniciativa conte sobretudo com uma antipatia pela publicidade, uma ojeriza de bom-tom, que vê nos outdoors o símbolo
(ou, pior, a causa) de nossa frivolidade (e de nossa "massificação", acrescentam alguns): tirem os outdoors e
seremos curados de nossa vontade
de cuecas de luxo, voltaremos a pensar em coisas importantes, belas e
generosas. Ou seja, suspeito que
odiemos, na publicidade, a futilidade de nossos próprios desejos. E a lei
nos agrada com a ilusão de que exorcizamos, enfim, o consumismo (o
qual, claro, não é parte da gente, mas
um demônio que nos possui).
Parodiando o marquês de Sade:
"Paulistanos, mais um esforço para
sermos revolucionários".
ccalligari@uol.com.br
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