São Paulo, sexta-feira, 12 de outubro de 2007

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análise

De tom ingênuo, obra da autora ataca opressão

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Doris Lessing está presa ao passado. Salvo alguns remanescentes da contracultura e do feminismo dos anos 1960, encantados com a ousadia de seu livro mais conhecido, "O Carnê Dourado", ninguém parecia lembrar-se dela. No Brasil, a maioria de sua copiosa obra não foi traduzida.
Que ninguém se engane com o rosto de doce velhinha que Lessing atualmente estampa nas fotos. Ela foi capaz de grandes sacrifícios por sua carreira, até mesmo o de ter abandonado o marido e os filhos na África e partir para Londres.
A autora é hoje uma vaga sombra de dias mais augustos. Remoendo velhos procedimentos narrativos ou se lançando em estranhas empreitadas de ficção científica, ela só retomou a antiga e boa forma com os autobiográficos ou semi-autobiográficos de "Debaixo da Minha Pele", "Andando na Sombra" e "O Sonho mais Doce".
Nesta última obra, ela faz um ácido (sem trocadilho) balanço da geração da década de 1960, composta por burgueses que acreditavam ser capazes de mudar o mundo com música, drogas e uma atitude liberal nos costumes e radical na política.
Nada deu certo, de fato, e esses jovens burgueses atualmente comandam corporações, enquanto a miséria continua a reinar na África onde a autora morou longos anos, e terroristas lançam ataques monstruosos contra a suposta civilização. O "flower power" se transformou em aviões arremessados contra arranha-céus, e a globalização engoliu o sonho de um socialismo justo.
O melhor da obra de Lessing situa-se no período em que ainda se acreditava, mesmo que vagamente, no sonho e no ser humano. Há um quê romântico e ingênuo nesse posicionamento legítimo.
Lessing promoveu um mergulho na mente de seus personagens -um mergulho que beira a dissolução dos sentidos, da loucura e de uma espécie de experiência mística que "salvaria" o ser humano em geral (e a mulher em particular) das garras da sociedade burguesa.
Seu mérito foi, por meio dessa imersão, fazer-nos perceber as contradições da sociedade que os oprime -enquanto, ao mesmo tempo, procurava alargar os limites da técnica de sorte a fazer caber esses fluxos de consciência. Nesse sentido, deve muito a James Joyce e Virginia Woolf, que foram melhores do que ela, mas viveram em outros tempos.
A Academia Sueca parece ter pretendido premiar um autor por seu conjunto de obra, por uma visão existencial e artística que evoluiu em uma dezena de volumes. Mesmo assim, ao conceder o galardão a uma mulher cujas histórias então explosivas serviram de esteio a um zelo maior pela questão dos direitos humanos e da mulher, não deixa de ser, como sempre, uma premiação política.


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