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análise
De tom ingênuo, obra da autora ataca opressão
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Doris Lessing está presa ao passado.
Salvo alguns remanescentes da contracultura e
do feminismo dos anos 1960,
encantados com a ousadia de
seu livro mais conhecido, "O
Carnê Dourado", ninguém
parecia lembrar-se dela. No
Brasil, a maioria de sua copiosa obra não foi traduzida.
Que ninguém se engane
com o rosto de doce velhinha
que Lessing atualmente estampa nas fotos. Ela foi capaz de grandes sacrifícios
por sua carreira, até mesmo
o de ter abandonado o marido e os filhos na África e partir para Londres.
A autora é hoje uma vaga
sombra de dias mais augustos. Remoendo velhos procedimentos narrativos ou se
lançando em estranhas empreitadas de ficção científica,
ela só retomou a antiga e boa
forma com os autobiográficos ou semi-autobiográficos
de "Debaixo da Minha Pele",
"Andando na Sombra" e "O
Sonho mais Doce".
Nesta última obra, ela faz
um ácido (sem trocadilho)
balanço da geração da década de 1960, composta por
burgueses que acreditavam
ser capazes de mudar o mundo com música, drogas e uma
atitude liberal nos costumes
e radical na política.
Nada deu certo, de fato, e
esses jovens burgueses
atualmente comandam corporações, enquanto a miséria continua a reinar na África onde a autora morou longos anos, e terroristas lançam ataques monstruosos
contra a suposta civilização.
O "flower power" se transformou em aviões arremessados contra arranha-céus, e
a globalização engoliu o sonho de um socialismo justo.
O melhor da obra de Lessing situa-se no período em
que ainda se acreditava, mesmo que vagamente, no sonho
e no ser humano. Há um quê
romântico e ingênuo nesse
posicionamento legítimo.
Lessing promoveu um
mergulho na mente de seus
personagens -um mergulho
que beira a dissolução dos
sentidos, da loucura e de
uma espécie de experiência
mística que "salvaria" o ser
humano em geral (e a mulher em particular) das garras da sociedade burguesa.
Seu mérito foi, por meio
dessa imersão, fazer-nos
perceber as contradições da
sociedade que os oprime
-enquanto, ao mesmo tempo, procurava alargar os limites da técnica de sorte a fazer
caber esses fluxos de consciência. Nesse sentido, deve
muito a James Joyce e Virginia Woolf, que foram melhores do que ela, mas viveram
em outros tempos.
A Academia Sueca parece
ter pretendido premiar um
autor por seu conjunto de
obra, por uma visão existencial e artística que evoluiu
em uma dezena de volumes.
Mesmo assim, ao conceder o
galardão a uma mulher cujas
histórias então explosivas
serviram de esteio a um zelo
maior pela questão dos direitos humanos e da mulher,
não deixa de ser, como sempre, uma premiação política.
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