São Paulo, terça-feira, 12 de outubro de 2010

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Chega de palhaços


As formas narrativas clássicas estão esgotadas na sua missão de capturar e reproduzir a realidade


POR VEZES acontece: o ano ainda não terminou e eu já encontrei o meu livro de 2010. Foi escrito por David Shields. Pena que não tenha sido escrito por mim: é raro encontrar um pedaço de prosa com o qual concordamos da primeira à última página.
Ou, no caso em apreço, do primeiro ao último número, porque a obra está numericamente dividida em 618 teses.
Título: "Reality Hunger: A Manifesto" (Hamish Hamilton, 219 págs.). É, como se lê, um manifesto. Ou, como Shields o apresenta, uma nova "ars poetica" para artistas que seja capaz de captar a "realidade". Porque todos os movimentos artísticos têm "fome de realidade".
Mas o que é a "realidade"? Para responder a essa pergunta arcana, Shields tem uma certeza: as formas narrativas clássicas estão esgotadas na sua missão de captá-la e reproduzi-la.
Fiquemos pela literatura. No século 19, período arcádico do romance como expressão estética, existiam regras férreas sobre o gênero.
"Romance" era, com maiores ou menores variações, uma narrativa escrita no pretérito perfeito, normalmente na terceira pessoa e com desenvolvimento cronológico, linear.
Exceções sempre houve. Mas em Jean Valjean ou Elizabeth Bennet encontramos uma "história" com princípio, meio e fim; e um personagem principal no fundo, um "indivíduo" que carrega a ação sobre as costas.
E essa ação não é mera criação ociosa do autor. A história procura espelhar uma sociedade: seus códigos, suas virtudes, seus vícios. Suas "realidades".
O século 20 alterou as regras desse jogo: se o romance é um produto único da imaginação humana, como Henry James (1843-1916) pretendia, a "realidade" é uma criação solipsista, linguística, impermeável às influências "externas", sociais. Reais.
Shields argumenta, e argumenta bem, que nenhuma dessas tradições se ajusta ao tempo presente. E não é por acaso que, no seu particular panteão literário, nomes como Sebald (1944-2001) ou V.S. Naipaul ocupam espaço sagrado.
Romancistas? O rótulo talvez seja impróprio para tamanha impureza narrativa. Sebald ou Naipaul apresentam antes uma prosa "crioula", em que ficção e não ficção convivem no mesmo espaço.
A "realidade" não está dividida por gêneros, como as estantes das nossas livrarias. A "realidade" é uma manta de retalhos em que experiência, memória, pensamento e imaginação se cruzam e fertilizam continuamente.
Não é novidade para ninguém, muito menos para Shields, que a grande literatura do nosso tempo se encontra nas biografias e nas autobiografias. Por que são mais fiéis à "realidade"?
Não necessariamente. Antes pela capacidade de captarem a versatilidade e a fluidez de que é feita essa "realidade". Mesmo em seus momentos mais "irreais".
Alguém nega que uma parte considerável do que escrevemos sobre nós, e sobre os outros, é muitas vezes uma mistura, consciente ou inconsciente, de desejo e efabulação? E, se assim é, como negar também que a prosa do século 21 deva ser essa mistura de ficção e não ficção, biografia e autobiografia, crítica e meditação?
Leiam "O Livro do Desassossego", de Fernando Pessoa (1888-1935), aconselha Shields. Ali se encontra uma semente dessa "arte poética": um texto marcadamente na primeira pessoa do singular, em que a "realidade" não é mera transposição fotográfica do real, muito menos criação artificial de um real inexistente.
A "realidade" é a reconstituição possível do sentido e da experiência pessoal do autor, na figura heterônima de Bernando Soares.
Quando releio o "Desassossego" de Soares, nunca Lisboa me parece tão "verdadeira". Incomparavelmente mais "verdadeira" do que todas as ficções prosaicas do "era uma vez..." que usaram a cidade como palco ou ator principal.
Numa das melhores passagens do seu manifesto, Shields confessa que sempre teve dificuldades em escrever "ficção", no sentido tradicional do termo. E usa uma comparação luminosa: "Era como dirigir um automóvel vestido de palhaço".
Touché. Também eu sinto isso, não propriamente quando escrevo "ficção", o que é raro, mas quando leio a esmagadora maioria da ficção que hoje se publica. Sim, sinto que me estão a levar para um lugar qualquer; mas o motorista não engana ninguém. Ele está mascarado. Ele não é convincente. Ele é o palhaço da situação.

jpcoutinho@folha.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Marcelo Coelho


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