São Paulo, Sexta-feira, 12 de Novembro de 1999
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Os estragos da bomba e um olhar feminino

Divulgação
A autora Jasmina Tesanovic, que vive em Belgrado e escreveu sobre as transformações da cidade durante o conflito



Relatos sobre Belgrado durante o bombardeio da Otan feitos via Internet pela escritora sérvia Jasmina Tesanovic viram livro e filme


SYLVIA COLOMBO
Editora-assistente da Ilustrada


"Este não é um livro normal, mas, aqui em Belgrado, não se vive mais uma vida normal. Nossos filmes, livros e discos são parte de uma mesma família cultural, em que o único laço é o medo."
A escritora sérvia Jasmina Tesanovic, 45, estava em Belgrado (capital da Iugoslávia) quando o conflito entre os separatistas albaneses do Kosovo e o exército sérvio se intensificou, no início do ano. Na sequência, veio o bombardeio da Sérvia. O dia-a-dia dos habitantes de Belgrado, então, mudou radicalmente.
Em "Uma Guerra que Fosse Sua" ("A War of My Own"), Jasmina relata, em forma de diário, os acontecimentos em sua vida particular e na de seus amigos e familiares, durante o período.
Jasmina conta que escreveu o livro como uma terapia particular, um pouco por dia, e que não pensava em publicá-lo. Porém, quando uma amiga sueca lhe perguntou por e-mail como ela estava, Jasmina diz não ter tido forças para responder e mandou-lhe todo o diário via Internet.
A amiga jogou o texto na rede, o diário acabou indo parar nas mãos de uma editora espanhola e foi editado e traduzido para o espanhol, português e inglês.
Jasmina é romancista, poeta e roteirista de cinema. Nasceu em Belgrado e viveu no Egito e na Itália, onde estudou literatura. Traduziu para o sérvio obras de Italo Calvino, Joseph Brodsky e outros.
No último Festival Internacional de Cinema de Veneza, em setembro, Jasmina lançou um filme, produzido por uma televisão alemã, tendo o seu diário como inspiração. "É um dos únicos filmes artísticos rodados na Iugoslávia durante os bombardeios."
Leia a entrevista que Jasmina concedeu à Folha, por telefone, de sua casa, em Belgrado.

Folha - Por que você deu o nome ao livro de "Uma Guerra que Fosse Sua", numa analogia ao título do livro de Virgínia Woolf ("A Room of My Own")?
Jasmina Tesanovic -
O nome original deveria ser "A Moral Opera by a Political Idiot" (Uma Ópera Moral por um Idiota Político). Me inspirei no escritor Giacomo Leopardi (1798-1837), que também fez uma "ópera moral". Quando o título chegou ao editor, ele achou que uma "ópera moral" era muito "intelectual e irônico". Então sugeri "A War of My Own", um pouco menos intelectual, mas ainda bastante irônico. Além disso, gosto muito de Virgínia Woolf.

Folha - Você se diz uma idiota política vivendo hoje na Sérvia. Por quê?
Jasmina -
Uso o conceito de idiota político como era utilizado na filosofia grega, para falar daqueles a quem é negada a informação. Isso corresponde, hoje, na Sérvia, à maioria dos homens e a todas as mulheres.

Folha - Você acompanha a imprensa estrangeira?
Jasmina -
Sim, e acho que a CNN, a BBC e as outras não permitem a compreensão de situação alguma. Essas emissoras mostram os conflitos somente quando eles explodem, arrancando-os do contexto e priorizando os mais dramáticos. Fazem uma colagem de cenas de horror.

Folha - O que você considera errado na visão da imprensa estrangeira sobre a Iugoslávia?
Jasmina -
Eu odeio a idéia de que os Bálcãs são um lugar caótico, que o conflito religioso aqui é um problema insolúvel há milhares de anos. Isso é mentira, cada enfrentamento tem uma história particular e uma causa político-econômica muito específica.
Não existe um caos religioso ou um furor de nacionalismos, também não vivemos em guerra civil. Os conflitos são uma luta por poder e dinheiro, é por isso que se derrama sangue aqui. A independência de países como a Eslovênia, a Macedônia, a Bósnia e a Croácia se deu porque grupos influentes queriam criar seus próprios países com novos governos e novas elites. Está longe de ser uma identidade cultural comum.

Folha - A guerra já acabou?
Jasmina -
Não, ainda estamos vivendo nela. Temos uma lei marcial, não há comida nem remédios. A economia também é de guerra. Neste momento, minha mãe está morrendo num hospital porque não existem aqui os remédios de que ela precisa.

Folha - E como é a vida de uma escritora neste contexto?
Jasmina -
Ninguém jamais viveu só de arte na Iugoslávia. Escrever ou fazer música sempre significou ter dinheiro ou alguma outra atividade paralela. Agora, com a situação desde o início dos bombardeios, isso piorou.

Folha - Como você faz para publicar os seus livros?
Jasmina -
Sempre dei aulas, aqui, na Itália, na Alemanha. Além disso, busco fazer contatos com patrocinadores estrangeiros, o que viabiliza muita coisa. O filme-documentário (que leva o nome do livro "Uma Guerra que Fosse Sua") foi feito em parceria com uma produtora alemã, sou diretora e atriz.

Folha - Como você se sente ao assisti-lo?
Jasmina -
Falar sobre o filme, em palestras ou entrevistas, é muito bom, me faz sentir orgulhosa de tê-lo realizado. Mas quando eu o assisto a sensação é diferente, fico horrorizada, tremo, a guerra me vem à cabeça.

Folha - Existe censura?
Jasmina -
Não, existe anarquia. A grande imprensa, jornais e TVs, é vigiada. Mas não o que se publica em imprensa regional ou na alternativa, manifestos, poemas e livros que enfrentam o regime, porque o governo não tem como fiscalizar. É o caos depois da destruição.

Folha - Mas essa produção alternativa existe?
Jasmina -
É pouca, mas existe. A maioria dos escritores não tem dinheiro. A maior produção, pelo menos literária, vem de sérvios que vivem fora da Iugoslávia.

Folha - E na música?
Jasmina -
As bandas de rock, que sempre foram bastante comerciais e alinhadas com o pop inglês ou americano, estão fazendo um som mais agressivo, mais afirmativo, com uma temática nacionalista. Acho isso muito interessante, é uma tentativa da juventude de se defender.
Mas a nova geração é nacionalista a um grau muito perigoso, querem afirmar que não são "assassinos por natureza" (referência ao filme de Oliver Stone), mas acabam dando uma resposta agressiva como se assumissem este selo.

Folha - Você gostaria de deixar a Iugoslávia?
Jasmina -
Quando vejo a independência de uma ex-república iugoslava sinto inveja, gostaria de poder me separar também. Não de me separar da ditadura sérvia, mas de escapar ao destino que me foi traçado. Acho que queria me separar de mim mesma. Não adianta sair daqui, levo meu país comigo.


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