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"ÉBANO"
Kapuscinski mostra o que é ser jornalista na África
RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL
O leitor da imprensa escrita
está comodamente acostumado a ler e rapidamente criticar
o produto pronto, jornal ou revista, entregue na porta de casa antes
do café da manhã. Ou comentar
as imagens assistidas na televisão
na hora do jantar. Textos, imagens fixas ou em movimento do
outro lado do planeta aparecem
como por mágica para o usufruto
do leitor do confortável mundo
ocidental.
Uma excelente maneira para
começar a entender como se dá a
"produção" desse material é ler os
excelentes livros do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski. Com
uma enorme vantagem adicional.
Seus livros não têm a linguagem
estereotipada, simplificada, de
um despacho de uma agência noticiosa.
Apesar de ele ter passado 40
anos na África escrevendo para
uma dessas agências -ainda por
cima, uma do cinzento bloco comunista-, seus livros podem ser
classificados (como ele próprio o
faz) dentro da vertente do "new
journalism" de origem americana. Ou seja, um híbrido ente jornalismo e literatura, misturando
fatos e notícias com técnicas literárias de descrição e narração para prender o leitor.
Acredite, Kapuscinski consegue
atrair sua atenção. "Ébano - Minha Vida na África" é um "page
turner", como diriam os americanos. Um livro que se lê rapidinho,
virando página após página.
Em uma recente palestra em
São Paulo, o autor revelou que leva um ano para escrever um livro,
à velocidade de uma página por
dia. Obviamente ele teria sido
despedido faz tempo se esse fosse
seu ritmo de produção para a
agência estatal de notícias polonesa. Ele comenta que o jornalismo
de agência envolvia uma "linguagem pobre", meras 600 ou 800 insatisfatórias palavras para descrever um fato.
Já no livro ele pode abusar de
adjetivos, de impressões pessoais,
de descrições do estado de espírito de pessoas, das cores do céu, altura das árvores e direção do vento, que jamais seriam permitidos
pela sua agência. Ou, curiosamente, do calor. O tempo todo esse
polonês branquela reclama do calor sufocante, embora elogiando a
magnífica luz da África.
Kapuscinski -que já fez coberturas na América Latina, incluindo o Brasil em 1968- comenta
em dado ponto como é tranquila
a vida dos jornalistas que cobrem
Europa, comparados com os abnegados que cobrem África. Ora,
simplesmente chegar até a notícia
no continente africano é difícil.
Transmiti-la, então, pode ser uma
façanha à parte. Sobreviver exige
sorte e versatilidade, e neste livro
Kapuscinski dá bons exemplos,
sem parecer um metido a gostosão como era Ernest Hemingway
quando fazia jornalismo.
Ele chegou ao continente pela
primeira vez em 1957. Chegou no
momento certo para começar a
cobrir a história em rápido movimento. Aos poucos Kapuscinski
foi conhecendo os grandes atores
do momento, a geração de líderes
africanos que conduziu o processo de independência. Mas o que
mais o atraía não era visitar palácios presidenciais, mas sim "viajar de carona em caminhões, peregrinar com os nômades pelo deserto, me hospedar com os camponeses das savanas tropicais".
Kapuscinski viveu a descolonização da África, as esperanças que
seguiram a esse momento e a desilusão das guerras, primeiro alimentadas pela Guerra Fria, depois por meros ódios tribais.
Ele reclama particularmente
dos "senhores da guerra" africanos que exploram a população
desarmada dos seus próprios países. Para ele, "o senhor da guerra é
o oposto de Robin Hood. Ele rouba dos pobres para enriquecer e
alimentar suas gangues. Nós estamos em um mundo no qual a miséria condena uns à morte e transforma outros em monstros".
Nem tudo é desgraça. O livro
traz também descrições do lado
eterno, mágico, da África. Da importância do espírito de coletividade entre o africano. E não falta
humor, como no ensaio "Madame Diuf volta para casa".
Como jornalista, Kapuscinski
tinha (e tem) uma grande vantagem. Por ser polonês, vindo de
um país que historicamente costumava ser dilacerado por alemães, austríacos e russos, era fácil
se identificar com os africanos.
Por não vir de um país europeu
imperialista, como França ou Reino Unido, também era fácil criar
empatia com os locais, por mais
diferentes que fossem (e isso ele
deixa claro, não existe uma, mas
muitas Áfricas). O mesmo vale
para os raros brasileiros que visitam a África. Turistas ou jornalistas são sempre bem recebidos.
É importante destacar que a edição brasileira foi traduzida diretamente do polonês, como queria o
autor. Foi uma ótima opção, pois
o tradutor brasileiro fez um trabalho melhor que seu colega que fez
a versão em inglês (editada como
"The Shadow of the Sun"), acrescentando várias notas explicativas, sem as quais a compreensão
do texto seria mais difícil -a não
ser, claro, para aqueles que sabem
de cor os nomes das colônias de
férias soviéticas no Mar Negro.
Ébano - Minha Vida na África
Autor: Ryszard Kapuscinski
Tradutor: Tomasz Barcinski
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 37 (360 págs.)
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