São Paulo, terça-feira, 12 de novembro de 2002

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BERNARDO CARVALHO

O sentido fora do lugar

O que leva uma pessoa a abraçar uma religião, a se filiar a uma igreja e a acreditar que Deus se manifesta por meio de instituições -com dogmas, hierarquias e, por conseguinte, lutas pelo poder- criadas pelos homens? Em geral, uma busca por certezas, a mesma busca que pode levar um artista a procurar um grupo que o acolha e proteja, quando tudo na sua arte o condena a uma singularidade e a uma individualidade mais difícil e mais radical.
Ou pelo menos tudo na sua arte deveria afastá-lo da comodidade de uma consciência gregária, se ele tivesse coragem para encarar a lógica e a incerteza do seu ofício: que não se pode chamar propriamente de criação ao que se submete a um consenso ou a uma visão e a uma norma previamente concebidas, aprovadas e aceitas pelos que o cercam.
O mais curioso no caso do dramaturgo e cineasta americano Neil LaBute, e o que mais intriga críticos e jornalistas na sua biografia, é que ele tenha se convertido em mórmon praticante, quando tudo ou quase tudo nas suas peças contradiz, e de certa forma denuncia, o moralismo e o espírito de congregação.
LaBute não se submete a nenhuma regra de grupo para criar as suas peças. Aposta numa singularidade que o põe em contradição com a igreja, embora haja gente da própria igreja que não vê aí nenhuma contradição, a começar por ele.
As peças de Labute chegaram a ser premiadas pelos mórmons. Mas a liberdade de que elas desfrutam vai contra os princípios de qualquer igreja. As igrejas dependem de consensos internos para ganhar a identidade com a qual se contrapõem a outras igrejas. A identidade do artista, ao contrário, vem do dissenso. Não do dissenso que contribui para o consenso, mas de um questionamento em permanência, como qualidade absoluta. Assim, o fato de LaBute ser mórmon termina por contribuir paradoxalmente para a sua arte.
O dramaturgo e cineasta se converteu à Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias ainda na faculdade, mas os temas de suas peças levam a crer que sua conversão teve razões diversas das de quem costuma procurar o conforto da religião. Ao que parece, não estava em busca de paz, mas, ao contrário, de uma posição que o pusesse em estado de guerra e lhe permitisse criar, por meio da provocação, no sentido mais verdadeiro da palavra, embaralhando os estereótipos e as idéias feitas, a começar pelo que significa ser mórmon.
LaBute é um dramaturgo prolixo. Está com uma nova peça ("The Mercy Seat" - "O Trono do Senhor") para estrear em dezembro, em Nova York, com Sigourney Weaver como protagonista. Prepara também a estréia da versão cinematográfica de um de seus melhores textos, "The Shape of Things" ("A Forma das Coisas"), com o mesmo elenco da montagem teatral de 2001.
À diferença do convencional "Possessão", em cartaz em São Paulo, sua obra costuma ser perturbadora. A peça "Bash - A Gaggle of Saints" ("Farra - A Gargalhada dos Santos"), por exemplo, trata de três jovens casais mórmons, típicos americanos, simpáticos frequentadores de igreja, que vão a Nova York de carro para uma festa de antigos colegas de escola e acabam assassinando, aos murros e sem maiores explicações, um gay no Central Park.
LaBute é um caso exemplar num mundo que já não é o mesmo, embora ainda não se saiba exatamente o que ele é, como diz a propósito da arte um dos personagens de Godard, em "O Elogio do Amor". Uma época de confusão, antes de tudo se assentar mais uma vez sobre novas bases. Suas melhores peças procuram registrar esse momento de imposturas, de perda dos sentidos (sociais, culturais etc.), quando já não se distingue a justiça da demagogia, ou a verdade da hipocrisia, quando se confunde o simbólico com o real e se quebra a cara ao tentar aplicar velhas convicções a uma realidade que já não as comporta.
LaBute estreou no cinema com a adaptação de sua peça "Na Companhia de Homens", em 1997. Ao encenar o plano maquiavélico de dois executivos dispostos a manipular e massacrar as mulheres, o filme provocou reações diametralmente opostas, a ponto de ter sido definido ao mesmo tempo como misógino e feminista, confirmando a confusão de espectadores que já não são capazes de distinguir ou ter certeza do que estão vendo.
"The Shape of Things" é a versão feminina do mesmo princípio. O próprio cenário ("uma universidade liberal numa cidade conservadora") reforça a idéia de um mundo movediço, em que os sentidos saíram do lugar, em que nada é exatamente o que parece ser. Agora, é uma estudante de artes que resolve dar uma nova forma ao namorado. Não se pode confiar nem mesmo nos sentimentos, tudo é manipulação.
É possível que LaBute não passe de um velho moralista ("um moralista a meio período", como ele costuma ironizar), um provocador cabotino ou um conservador tão saudoso dos "antigos valores americanos" quanto o mais reacionário dos republicanos. A dificuldade é decidir, diante do caos dos sentidos, se o aparente revolucionário é no fundo um conservador ou se é o aparente moralista que é no fundo um revolucionário.



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