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BERNARDO CARVALHO
O sentido fora do lugar
O que leva uma pessoa a
abraçar uma religião, a se
filiar a uma igreja e a acreditar
que Deus se manifesta por meio
de instituições -com dogmas,
hierarquias e, por conseguinte, lutas pelo poder- criadas pelos homens? Em geral, uma busca por
certezas, a mesma busca que pode
levar um artista a procurar um
grupo que o acolha e proteja,
quando tudo na sua arte o condena a uma singularidade e a uma
individualidade mais difícil e
mais radical.
Ou pelo menos tudo na sua arte
deveria afastá-lo da comodidade
de uma consciência gregária, se
ele tivesse coragem para encarar
a lógica e a incerteza do seu ofício:
que não se pode chamar propriamente de criação ao que se submete a um consenso ou a uma visão e a uma norma previamente
concebidas, aprovadas e aceitas
pelos que o cercam.
O mais curioso no caso do dramaturgo e cineasta americano
Neil LaBute, e o que mais intriga
críticos e jornalistas na sua biografia, é que ele tenha se convertido em mórmon praticante, quando tudo ou quase tudo nas suas
peças contradiz, e de certa forma
denuncia, o moralismo e o espírito de congregação.
LaBute não se submete a nenhuma regra de grupo para criar
as suas peças. Aposta numa singularidade que o põe em contradição com a igreja, embora haja
gente da própria igreja que não vê
aí nenhuma contradição, a começar por ele.
As peças de Labute chegaram a
ser premiadas pelos mórmons.
Mas a liberdade de que elas desfrutam vai contra os princípios de
qualquer igreja. As igrejas dependem de consensos internos para
ganhar a identidade com a qual
se contrapõem a outras igrejas. A
identidade do artista, ao contrário, vem do dissenso. Não do dissenso que contribui para o consenso, mas de um questionamento em permanência, como qualidade absoluta. Assim, o fato de
LaBute ser mórmon termina por
contribuir paradoxalmente para
a sua arte.
O dramaturgo e cineasta se converteu à Igreja de Jesus Cristo dos
Últimos Dias ainda na faculdade,
mas os temas de suas peças levam
a crer que sua conversão teve razões diversas das de quem costuma procurar o conforto da religião. Ao que parece, não estava
em busca de paz, mas, ao contrário, de uma posição que o pusesse
em estado de guerra e lhe permitisse criar, por meio da provocação, no sentido mais verdadeiro
da palavra, embaralhando os estereótipos e as idéias feitas, a começar pelo que significa ser mórmon.
LaBute é um dramaturgo prolixo. Está com uma nova peça
("The Mercy Seat" - "O Trono do
Senhor") para estrear em dezembro, em Nova York, com Sigourney Weaver como protagonista.
Prepara também a estréia da versão cinematográfica de um de
seus melhores textos, "The Shape
of Things" ("A Forma das Coisas"), com o mesmo elenco da
montagem teatral de 2001.
À diferença do convencional
"Possessão", em cartaz em São
Paulo, sua obra costuma ser perturbadora. A peça "Bash - A Gaggle of Saints" ("Farra - A Gargalhada dos Santos"), por exemplo,
trata de três jovens casais mórmons, típicos americanos, simpáticos frequentadores de igreja,
que vão a Nova York de carro para uma festa de antigos colegas de
escola e acabam assassinando,
aos murros e sem maiores explicações, um gay no Central Park.
LaBute é um caso exemplar
num mundo que já não é o mesmo, embora ainda não se saiba
exatamente o que ele é, como diz
a propósito da arte um dos personagens de Godard, em "O Elogio
do Amor". Uma época de confusão, antes de tudo se assentar
mais uma vez sobre novas bases.
Suas melhores peças procuram
registrar esse momento de imposturas, de perda dos sentidos (sociais, culturais etc.), quando já
não se distingue a justiça da demagogia, ou a verdade da hipocrisia, quando se confunde o simbólico com o real e se quebra a cara ao tentar aplicar velhas convicções a uma realidade que já não
as comporta.
LaBute estreou no cinema com
a adaptação de sua peça "Na
Companhia de Homens", em
1997. Ao encenar o plano maquiavélico de dois executivos dispostos a manipular e massacrar
as mulheres, o filme provocou
reações diametralmente opostas,
a ponto de ter sido definido ao
mesmo tempo como misógino e
feminista, confirmando a confusão de espectadores que já não
são capazes de distinguir ou ter
certeza do que estão vendo.
"The Shape of Things" é a versão feminina do mesmo princípio. O próprio cenário ("uma universidade liberal numa cidade
conservadora") reforça a idéia de
um mundo movediço, em que os
sentidos saíram do lugar, em que
nada é exatamente o que parece
ser. Agora, é uma estudante de
artes que resolve dar uma nova
forma ao namorado. Não se pode
confiar nem mesmo nos sentimentos, tudo é manipulação.
É possível que LaBute não passe
de um velho moralista ("um moralista a meio período", como ele
costuma ironizar), um provocador cabotino ou um conservador
tão saudoso dos "antigos valores
americanos" quanto o mais reacionário dos republicanos. A dificuldade é decidir, diante do caos
dos sentidos, se o aparente revolucionário é no fundo um conservador ou se é o aparente moralista
que é no fundo um revolucionário.
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