São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O DKW já foi o nosso futuro

É mania antiga: antes de Cabral, alguém já deveria ter dito a respeito daquelas imensas terras, verdes e virgens terras, ainda não incorporadas à história: é um país de futuro. As razões são meio enigmáticas, mas todas as afirmações históricas são também problemáticas. E, como se tratava de uma verdade "a priori", o mais lógico seria esperar justamente esse "priori", que, no caso, se entrelaçava com o futuro.
Quatrocentos e tantos anos depois, um escritor austríaco aqui aportou. As autoridades da época encomendaram-lhe um livro sobre a nação, e ninguém reprovou Stefan Zweig quando, ao dar título a seu trabalho, remeteu-nos ao "priori" anteriormente citado: país do futuro. Dali para cá, não houve mais dúvidas: com sua autoridade de autor internacional, grande humanista, biógrafo de Maria Antonieta, Fernão de Magalhães e Fouché, nada de mais que aceitássemos o futuro como nossa meta e Stefan Zweig como nosso profeta. Era uma rima e uma solução.
Pensei nisso quando sentei ao volante de um dos primeiros carros nacionais, um estranho besouro cabalisticamente chamado de DKW. Apesar de pessimista profissional e razoavelmente bem-sucedido nesse mister, tive de admitir a verdade que me entrava pelos olhos e me transportava de um lugar para outro. Sim, o Brasil era um país de futuro e, em certo sentido, eu estava sentado dentro dele: aquela geringonça andava, substituindo o meu combalido Studebaker de passadas glórias. Tinha um cheiro de óleo enjoativo, a alavanca da mudança sofria do mal de Parkinson, tudo mal-acabado e barulhento, mas o besouro funcionava, era econômico e nacional. Homens da minha geração haviam se habituado a descrer de tudo o que fosse indústria nativa: tesourinha de unhas tinha de ser Sollingen, as bicicletas eram Phillips -o Brasil não sabia fabricar tesourinhas de unhas nem bicicletas. As primeiras que apareceram atraíam, com alguma razão, as mesmas cóleras que hoje dedicamos aos uísques aqui fabricados.
Sim, eu estava no futuro proclamado por gerações que nos antecederam e pelo autor austríaco que, afinal, se suicidara, não por causa do nosso futuro, mas pela falta de futuro que ele descobrira na própria humanidade.
Bem, isso foi um momento de nossa história. E, para sermos justos, durou algum tempo, uns cinco anos talvez ou menos. Quando, em 1958, o rei da Suécia entregou a Bellini a copa Jules Rimet, atingíamos outra vez o futuro, a nossa "finest hour", o "optimum" dos escolásticos medievais. Repetimos a proeza mais quatro vezes; contudo o clima já não era o mesmo. Um corvo penetrara em nossos espaços e aqui se instalara para repetir: nunca mais.
Corte rápido para os nossos dias: temos realmente um futuro? Possuímos um objetivo nacional além de nossas atuações nas Copas do Mundo e nas emoções das novelas das oito? Lendo as folhas que se editam pela pátria, ficamos sabendo que um único assunto ocupa e preocupa a classe política: quem será o sucessor do atual presidente? Nossos horizontes não transcendem ao episódio eleitoral. Acabadas as eleições municipais de outubro passado, nossas agulhas apontam o único azimute capaz de interessar à classe política e a seus ramais econômicos e midiáticos.
Um viajante que andou pela Argentina nos anos 50 voltou de lá horrorizado: a nação (militares, civis, esquerda, direita, centro, boêmios, cantores de tango, todos enfim) só tinha um assunto: descobrir onde estava o cadáver de Eva Perón.
O futuro daquela nação estava comprometido com o corpo da morta que, não lembro mais por que, precisava ser encontrado e repatriado. Um cadáver era o objetivo nacional. Cada país tem o futuro que merece e deseja.
O nosso caso é menos macabro. É certo que temos cadáveres e esqueletos mal explicados por aí, os ossos de Dana de Teffé nem foram ainda encontrados. Somos um país dos vivos, de radical vivacidade, e nada de maior vivacidade do que procurar saber quem será o próximo presidente da República. Devastado pelas incertezas do dia-a-dia, o desemprego, a violência, os juros e o FMI, o brasileiro desloca para daqui a dois anos não exatamente o seu futuro, mas o começo de nova tentativa de ter um futuro. As anteriores parece que não deram certo.
Afinal, quando Stefan Zweig declarou que tínhamos um futuro, não pensava na opção entre o PT e o PSDB, entre a reeleição de Lula e uma cara nova, se é que será nova mesmo.
Melhor para todos: o futuro nacional, que já era modesto, fica mais modesto, reduzido aos dois anos que dele nos separam. O DKW que tanto me deslumbrou em tempos idos e vividos nem mais é fabricado. Nesse particular, melhoramos de futuro e parece que bastante. Mas não chegamos ainda ao futuro que Stefan Zweig nos prometeu.


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