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CARLOS HEITOR CONY
O DKW já foi o nosso futuro
É mania antiga: antes de Cabral, alguém já deveria ter
dito a respeito daquelas imensas
terras, verdes e virgens terras, ainda não incorporadas à história: é
um país de futuro. As razões são
meio enigmáticas, mas todas as
afirmações históricas são também problemáticas. E, como se
tratava de uma verdade "a priori", o mais lógico seria esperar justamente esse "priori", que, no caso, se entrelaçava com o futuro.
Quatrocentos e tantos anos depois, um escritor austríaco aqui
aportou. As autoridades da época
encomendaram-lhe um livro sobre a nação, e ninguém reprovou
Stefan Zweig quando, ao dar título a seu trabalho, remeteu-nos ao
"priori" anteriormente citado:
país do futuro. Dali para cá, não
houve mais dúvidas: com sua autoridade de autor internacional,
grande humanista, biógrafo de
Maria Antonieta, Fernão de Magalhães e Fouché, nada de mais
que aceitássemos o futuro como
nossa meta e Stefan Zweig como
nosso profeta. Era uma rima e
uma solução.
Pensei nisso quando sentei ao
volante de um dos primeiros carros nacionais, um estranho besouro cabalisticamente chamado
de DKW. Apesar de pessimista
profissional e razoavelmente
bem-sucedido nesse mister, tive
de admitir a verdade que me entrava pelos olhos e me transportava de um lugar para outro. Sim, o
Brasil era um país de futuro e, em
certo sentido, eu estava sentado
dentro dele: aquela geringonça
andava, substituindo o meu combalido Studebaker de passadas
glórias. Tinha um cheiro de óleo
enjoativo, a alavanca da mudança sofria do mal de Parkinson, tudo mal-acabado e barulhento,
mas o besouro funcionava, era
econômico e nacional. Homens
da minha geração haviam se habituado a descrer de tudo o que
fosse indústria nativa: tesourinha
de unhas tinha de ser Sollingen,
as bicicletas eram Phillips -o
Brasil não sabia fabricar tesourinhas de unhas nem bicicletas. As
primeiras que apareceram
atraíam, com alguma razão, as
mesmas cóleras que hoje dedicamos aos uísques aqui fabricados.
Sim, eu estava no futuro proclamado por gerações que nos antecederam e pelo autor austríaco
que, afinal, se suicidara, não por
causa do nosso futuro, mas pela
falta de futuro que ele descobrira
na própria humanidade.
Bem, isso foi um momento de
nossa história. E, para sermos justos, durou algum tempo, uns cinco anos talvez ou menos. Quando,
em 1958, o rei da Suécia entregou
a Bellini a copa Jules Rimet, atingíamos outra vez o futuro, a nossa
"finest hour", o "optimum" dos
escolásticos medievais. Repetimos
a proeza mais quatro vezes; contudo o clima já não era o mesmo.
Um corvo penetrara em nossos espaços e aqui se instalara para repetir: nunca mais.
Corte rápido para os nossos
dias: temos realmente um futuro?
Possuímos um objetivo nacional
além de nossas atuações nas Copas do Mundo e nas emoções das
novelas das oito? Lendo as folhas
que se editam pela pátria, ficamos
sabendo que um único assunto
ocupa e preocupa a classe política: quem será o sucessor do atual
presidente? Nossos horizontes não
transcendem ao episódio eleitoral. Acabadas as eleições municipais de outubro passado, nossas
agulhas apontam o único azimute capaz de interessar à classe política e a seus ramais econômicos
e midiáticos.
Um viajante que andou pela
Argentina nos anos 50 voltou de
lá horrorizado: a nação (militares, civis, esquerda, direita, centro, boêmios, cantores de tango,
todos enfim) só tinha um assunto:
descobrir onde estava o cadáver
de Eva Perón.
O futuro daquela nação estava
comprometido com o corpo da
morta que, não lembro mais por
que, precisava ser encontrado e
repatriado. Um cadáver era o objetivo nacional. Cada país tem o
futuro que merece e deseja.
O nosso caso é menos macabro.
É certo que temos cadáveres e esqueletos mal explicados por aí, os
ossos de Dana de Teffé nem foram
ainda encontrados. Somos um
país dos vivos, de radical vivacidade, e nada de maior vivacidade
do que procurar saber quem será
o próximo presidente da República. Devastado pelas incertezas do
dia-a-dia, o desemprego, a violência, os juros e o FMI, o brasileiro desloca para daqui a dois anos
não exatamente o seu futuro, mas
o começo de nova tentativa de ter
um futuro. As anteriores parece
que não deram certo.
Afinal, quando Stefan Zweig
declarou que tínhamos um futuro, não pensava na opção entre o
PT e o PSDB, entre a reeleição de
Lula e uma cara nova, se é que será nova mesmo.
Melhor para todos: o futuro nacional, que já era modesto, fica
mais modesto, reduzido aos dois
anos que dele nos separam. O
DKW que tanto me deslumbrou
em tempos idos e vividos nem
mais é fabricado. Nesse particular, melhoramos de futuro e parece que bastante. Mas não chegamos ainda ao futuro que Stefan
Zweig nos prometeu.
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