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De Paraisópolis a Barcelona
Documentário sobre morador da favela paulistana faz parte das comemorações do sesquicentenário de Antonio Gaudi
DA REPORTAGEM LOCAL
Não há nada de reto na casa de
Estevão Silva da Conceição. As
paredes são sinuosas, os ângulos
quebrados, a escada irregular.
Tortas são também as histórias
desse baiano de Santa Estevão.
Desde que deixou o Nordeste,
adolescente, ele fez um zigue-zague tortuoso por todo o interior
do Brasil. Construiu ponte em
Osasco (SP), montou caixas d'água em Campo Grande (MS), ergueu arquibancadas no Rio de Janeiro. Às tantas, o amigo cearense
Zé do Cano o convidou a trabalhar em São Paulo e a viver em Paraisópolis. No ar cinzento da favela, Estevão cavucou o início dos
seus "Jardins Suspensos", como
chama sua morada.
"Nunca tinha visto tão pouco
verde", lembra o faxineiro, que
também trabalha aparando gramados de um prédio de classe alta
nos Jardins. A vontade de plantar
não casava com a falta de espaço
no lote do barraco. "Armei umas
vigas para elas treparem em cima", diz.
E dia a dia, antes do trabalho,
Estevão ampliava a espécie de floresta de concreto. Um dia, conta
ele, achou que estava tudo muito
cinza e começou a fazer decorações com tampinhas de garrafa de
refrigerante. O trabalho, começado há 15 anos, continuou com restos de ladrilho, cacos de vidro,
restos de pratos e xícaras de louça.
Os mosaicos pouco usuais e as
formas sinuosas da construção,
que ultrapassava já os cinco metros de altura, começaram a atrair
a conta-gotas pesquisadores de
arquitetura, jornalistas e curiosos.
E assim Estevão começou a ouvir
falar de um tal de Gaudí.
No ano passado, o fotógrafo
Bob Wolfenson publicou, no primeiro número da revista de artes
"55", uma reportagem sobre o
exótico arquiteto de Paraisópolis.
No início do ano, a publicação
chegou às mãos do cineasta brasileiro Sergio Oksman, que vive na
Espanha há três anos.
Diretor de documentários premiados com temas distintos como o jogador de futebol Ronaldo,
o presidente da Espanha, José
Maria Aznar, e os lixeiros de Madri, onde vive, Oksman se espantou com o trabalho de Estevão.
E as imagens do palácio de Paraisópolis viajaram então a Barcelona, quando o documentarista
levou as fotografias aos principais
centros de estudos da obra de Antoni Gaudí.
Apoiado por instituições locais
como o Centro de Estudos Gaudinistas e o Clube Gaudí, assim como pelo holandês Juan Bassegoda, considerado o maior estudioso na obra do arquiteto da Sagrada Família e de outros cartões-postais de Barcelona, Oksman decidiu marcar o encontro dos
"Gaudís".
Em agosto deste ano, o cineasta
esteve em Paraisópolis filmando
cada reentrância da casa do "Gaudí" tropical: os corredores baixos
("é uma homenagem aos baixinhos", explica o homenzinho de
1,70 m), o quarto da filha Estefânia, decorado com estrelas de madeira, o solário repleto de ervas
aromáticas ao qual se chega por
uma escada de piscina velha.
Em setembro, o faxineiro retribuiu a visita. Estevão, que nunca
tinha visto de perto um avião, foi a
Barcelona.
"É impressionante a sensibilidade dele. De todas as coisas que
viu do Gaudí, ele sempre elogiava
os trabalhos mais sofisticados",
conta Oksman. "Quando visitou
o parque Guell", relata o documentarista, falando sobre uma
das obras-primas do arquiteto catalão, "Estevão parou a nossa caminhada para abraçar uma árvore. O diretor do Centro de Estudos
Gaudinistas, Luis Gueilburt, que
estava junto, ficou arrepiado. Ele
disse que aquela era a única árvore em todo o parque que era cultivada pessoalmente por Gaudí."
Mas o documentarista de "Gaudí na Favela" adverte que a idéia
não é mostrar o faxineiro baiano
como um "bom selvagem". "Tentei o tempo todo evitar a idéia de
que Estevão é apenas uma personagem exótica. Ele é um artista."
Para o cineasta, os elementos
que mais aproximam o arquiteto
catalão morto em 1926 e o construtor de Paraisópolis é o "afã pelos detalhes", a amplitude de tipos
de materiais usados para suas
obras e a força de vontade ("Os
homens se dividem em duas categorias: os de palavra e os de ação.
Os primeiros dizem, os segundo
executam. Sou do segundo grupo", dizia Gaudí).
De acordo com Oksman, o que
espantou os estudiosos de Gaudí
não foi apenas a semelhança com
o trabalho do arquiteto catalão,
mas a espontaneidade. "O estudioso Juan Bassegoda diz que conhece imitadores de Gaudí, mas
que nunca havia visto algo tão parecido feito intuitivamente."
(CASSIANO ELEK MACHADO)
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