São Paulo, quarta-feira, 12 de dezembro de 2001

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De Paraisópolis a Barcelona

Documentário sobre morador da favela paulistana faz parte das comemorações do sesquicentenário de Antonio Gaudi

DA REPORTAGEM LOCAL

Não há nada de reto na casa de Estevão Silva da Conceição. As paredes são sinuosas, os ângulos quebrados, a escada irregular. Tortas são também as histórias desse baiano de Santa Estevão.
Desde que deixou o Nordeste, adolescente, ele fez um zigue-zague tortuoso por todo o interior do Brasil. Construiu ponte em Osasco (SP), montou caixas d'água em Campo Grande (MS), ergueu arquibancadas no Rio de Janeiro. Às tantas, o amigo cearense Zé do Cano o convidou a trabalhar em São Paulo e a viver em Paraisópolis. No ar cinzento da favela, Estevão cavucou o início dos seus "Jardins Suspensos", como chama sua morada.
"Nunca tinha visto tão pouco verde", lembra o faxineiro, que também trabalha aparando gramados de um prédio de classe alta nos Jardins. A vontade de plantar não casava com a falta de espaço no lote do barraco. "Armei umas vigas para elas treparem em cima", diz.
E dia a dia, antes do trabalho, Estevão ampliava a espécie de floresta de concreto. Um dia, conta ele, achou que estava tudo muito cinza e começou a fazer decorações com tampinhas de garrafa de refrigerante. O trabalho, começado há 15 anos, continuou com restos de ladrilho, cacos de vidro, restos de pratos e xícaras de louça.
Os mosaicos pouco usuais e as formas sinuosas da construção, que ultrapassava já os cinco metros de altura, começaram a atrair a conta-gotas pesquisadores de arquitetura, jornalistas e curiosos. E assim Estevão começou a ouvir falar de um tal de Gaudí.
No ano passado, o fotógrafo Bob Wolfenson publicou, no primeiro número da revista de artes "55", uma reportagem sobre o exótico arquiteto de Paraisópolis.
No início do ano, a publicação chegou às mãos do cineasta brasileiro Sergio Oksman, que vive na Espanha há três anos.
Diretor de documentários premiados com temas distintos como o jogador de futebol Ronaldo, o presidente da Espanha, José Maria Aznar, e os lixeiros de Madri, onde vive, Oksman se espantou com o trabalho de Estevão.
E as imagens do palácio de Paraisópolis viajaram então a Barcelona, quando o documentarista levou as fotografias aos principais centros de estudos da obra de Antoni Gaudí.
Apoiado por instituições locais como o Centro de Estudos Gaudinistas e o Clube Gaudí, assim como pelo holandês Juan Bassegoda, considerado o maior estudioso na obra do arquiteto da Sagrada Família e de outros cartões-postais de Barcelona, Oksman decidiu marcar o encontro dos "Gaudís".
Em agosto deste ano, o cineasta esteve em Paraisópolis filmando cada reentrância da casa do "Gaudí" tropical: os corredores baixos ("é uma homenagem aos baixinhos", explica o homenzinho de 1,70 m), o quarto da filha Estefânia, decorado com estrelas de madeira, o solário repleto de ervas aromáticas ao qual se chega por uma escada de piscina velha.
Em setembro, o faxineiro retribuiu a visita. Estevão, que nunca tinha visto de perto um avião, foi a Barcelona.
"É impressionante a sensibilidade dele. De todas as coisas que viu do Gaudí, ele sempre elogiava os trabalhos mais sofisticados", conta Oksman. "Quando visitou o parque Guell", relata o documentarista, falando sobre uma das obras-primas do arquiteto catalão, "Estevão parou a nossa caminhada para abraçar uma árvore. O diretor do Centro de Estudos Gaudinistas, Luis Gueilburt, que estava junto, ficou arrepiado. Ele disse que aquela era a única árvore em todo o parque que era cultivada pessoalmente por Gaudí."
Mas o documentarista de "Gaudí na Favela" adverte que a idéia não é mostrar o faxineiro baiano como um "bom selvagem". "Tentei o tempo todo evitar a idéia de que Estevão é apenas uma personagem exótica. Ele é um artista."
Para o cineasta, os elementos que mais aproximam o arquiteto catalão morto em 1926 e o construtor de Paraisópolis é o "afã pelos detalhes", a amplitude de tipos de materiais usados para suas obras e a força de vontade ("Os homens se dividem em duas categorias: os de palavra e os de ação. Os primeiros dizem, os segundo executam. Sou do segundo grupo", dizia Gaudí).
De acordo com Oksman, o que espantou os estudiosos de Gaudí não foi apenas a semelhança com o trabalho do arquiteto catalão, mas a espontaneidade. "O estudioso Juan Bassegoda diz que conhece imitadores de Gaudí, mas que nunca havia visto algo tão parecido feito intuitivamente."
(CASSIANO ELEK MACHADO)



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