São Paulo, quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

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Crítica/"eyeSpace", "CRWDSPCR" e "Crises"

Merce Cunningham cria novo limite entre a dança e a música

Em "eyeSpace", expectador escolhe ordem de músicos do espetáculo com iPod

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA, EM PARIS

Presença marcante na cena mundial há cinco décadas, o norte-americano Merce Cunningham tem interagido caracteristicamente com as invenções tecnológicas e experimentações formais do seu tempo, sempre com coragem e rigor.
Nesta temporada de sua companhia, no Théatre de la Ville, ele apresenta três peças, abrangendo mais de 40 anos de carreira: "CRWDSPCR" (1993), uma das primeiras criações empregando o programa de computador "Dance Forms" para a composição coreográfica; "Crises" (1960), uma antológica pesquisa de movimentos; e "eyeSpace" (2006), que leva a um novo limite a dissociação entre dança e música, típica de sua obra -o expectador recebe um iPod para escolher a ordem de músicas do espetáculo.
"CRWDSPCR" -o nome vem de "crowd spacer" (espacializador de multidão)- resiste aos afetos espontâneos, na busca de um gestual abstrato, significativo em si. A ocupação do espaço do palco é milimetricamente estudada, em contraponto muito livre com a música eletroacústica de John King ("Blues 99"), espécie de homenagem "up to date" da tradição brutalista da música concreta.
Já "Crises" é uma dança de câmara. A complexidade da movimentação poderia ser limitada a duas grandes vertentes: nas pernas, muito da dança clássica, com passos reconhecíveis desse vocabulário como arabesques e piques; no torso, muito da dança moderna, com dobraduras e braços em movimento geométrico.
Aqui, sentimentos e relações entre as pessoas na cena criam uma quase narrativa, estimulada pelos supercânones da música para piano mecânico de Conlon Nancarrow. E assim como sua música é o resultado visceral de operações mecânicas, também a dança, aqui, produz efeitos comoventemente líricos, a partir de um assumido antilirismo de origem.

Bossa em português
O título da peça mais nova, "eyeSpace", faz um trocadilho com o seu acessório obrigatório: "iPod" via "iSpace", literalmente "olhoEspaço".
A peça recombina incessantemente grupos e movimentos, contra um fundo desenhado de buracos, bolas e espetos, que ganham profundidade com a luz. O acervo do iPod foi composto por Mikel Rouse: dez faixas, combinando "new bossa" cantada em português com versões e elaborações davidbyrnianas e sobreposições eletrônicas, sobrepostas por sua vez ao cambiante bordão grave nos alto-falantes da sala.
Que uma das canções aborde uma questão política (em tradução: "Veja só quem foi às compras/ na faixa de Gaza"), cria outro tipo de sobreposição, aparentemente inesperada para a dança Cunningham. Mas a aparência, nessa arte e em todos os sentidos, engana. Tudo aqui fala do modo mais direto e pertinente ao nosso tempo; tudo exige uma resposta, que não é só questão de gosto.
Também não era só por gosto ou educação, que a platéia ovacionava o coreógrafo, numa cadeira de rodas, à frente do seu glorioso elenco de bailarinos, na estréia, sexta passada. Era um aplauso contundente, pela obra feita e "in progress"; ou melhor, por tudo o que essa obra fez e faz por nós e em nós.


Avaliação: ótimo

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