São Paulo, quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

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MARCELO COELHO

A vida dos outros (e a nossa também)

Na Alemanha de "A Vida dos Outros", as regras são explícitas, mas não podem ser obedecidas

OS TORTURADORES também choram. Pensei nisso durante uma cena de "A Vida dos Outros", ótimo filme de Florian von Donnersmarck atualmente em cartaz em São Paulo.
Mas há exagero na frase. O capitão Wiesler (Ulrich Mühe) não é exatamente um torturador. Trata-se de um capacitado funcionário da Stasi, a polícia política da Alemanha Oriental. Estamos em 1984, cinco anos antes da queda do Muro de Berlim.
Ele bem que faz seus interrogatórios, impondo chantagens insuportáveis e privações de sono em cima de qualquer suspeito de infidelidade ao regime "democrático-popular" que paga o seu salário.
Sua abordagem é profissional, burocrática, germânica. Nada que se compare a enfiar uma jovem, pouco importa se menor de idade ou não, numa cela com dezenas de presos que irão estuprá-la semanas a fio e queimá-la com pontas de cigarro. Mas aqui não vivemos sob nenhum regime totalitário; em termos de barbárie, entre nós há lugar para bastante "laissez-faire" e espontaneísmo de massas.
Dizer isso não significa negar, é claro, que se torturava à vontade nos países comunistas. Aliás, esse é um dos problemas de "A Vida dos Outros". Se o capitão Wiesler protagonizasse cenas medonhas de interrogatório, a estrutura dramática do filme estaria comprometida.
E dificilmente engoliríamos o epílogo da narrativa, que leva à conclusão de que aquele funcionário da Stasi era, afinal, um "homem bom".
Ei-lo encarregado de vigiar, dia após dia, a vida de um famoso dramaturgo, até então insuspeito de qualquer atividade subversiva. No sótão do prédio em que mora o simpático e puro Georg Dreyman, a Stasi instalou uma eficiente central de escuta clandestina.
Nada de errado, no início, acontece por lá. Mas o capitão Wiesler está obrigado a achar algo de comprometedor, custe o que custar. Seus superiores querem dificultar a vida do dramaturgo, pelo simples fato de ele ter um caso com uma atriz bonita demais. E um alto burocrata do regime estava interessado na moça.
Não me estendo mais na história do filme, que terá boas reviravoltas a partir desse ponto. "A Vida dos Outros" deixa o espectador tenso do início ao fim.
Seu protagonista é um policial sério e corretíssimo, dentro das regras do regime. Mas as regras do regime não foram feitas para serem obedecidas com seriedade e correção. A hipocrisia fundamental do sistema é que toda a retórica em favor do povo, do socialismo e da liberdade serve apenas para concentrar poder e privilégio nas mãos de uns poucos chefes.
O capitão Wiesler terá de decidir se obedece às regras ou aos seus superiores. As duas opções exigirão, de sua parte, um compromisso com a mentira, com a esperteza e a dissimulação.
Naquela situação, era preciso ser desonesto para não se transformar num canalha. Mas a desonestidade de um policial da Stasi não é algo que se consiga disfarçar por muito tempo, e é atitude de máximo risco.
Por essas e outras é que o capitão Wiesler, com os fones de ouvido bem acoplados à cabeça ereta de prussiano, derramará lágrimas de emoção.
Também por isso, a história do filme parece um bocado implausível. Apontar os dilemas éticos de um investigador da Alemanha Oriental em 1984 significa sugerir que, na carreira do protagonista, nada de muito questionável havia ocorrido até aquele momento.
Pelo menos, ele poderia estar estressado ou ter uma mulher grávida, como o nosso capitão Nascimento. Aqui talvez se notem melhor as diferenças entre um sistema e outro. No Brasil de "Tropa de Elite", a regra do jogo, que é torturar e fuzilar, não pode ser explicitada oficialmente e deve, entretanto, ser seguida.
Não há dilema, e o capitão Nascimento é menos um sujeito de decisões morais do que uma força elementar de brutalidade sem grandes dúvidas quanto ao acerto do que faz.
Na Alemanha de "A Vida dos Outros", as regras do jogo são explícitas e codificadas, mas não podem ser obedecidas. O dilema do capitão Wiesler nasce a partir da crença inabalável nas regras oficiais que lhe foram ensinadas.
É uma situação bem germânica, de burocracia estatal impecável, nazista ou comunista, violentando tudo o que um indivíduo possa ter de humano e de livre. Nossa situação, ao contrário, é bem "brasileira": quanto mais "humano" e "livre", numa burocracia nem um pouco impecável, mais violência o indivíduo parece capaz de cometer. Quem quiser que se ufane com isso.


coelhofsp@uol.com.br

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