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MARCELO COELHO
A vida dos outros (e a nossa também)
Na Alemanha de "A Vida dos Outros", as regras são explícitas, mas não podem ser obedecidas
OS TORTURADORES também
choram. Pensei nisso durante uma cena de "A Vida dos
Outros", ótimo filme de Florian von
Donnersmarck atualmente em cartaz em São Paulo.
Mas há exagero na frase. O capitão
Wiesler (Ulrich Mühe) não é exatamente um torturador. Trata-se de
um capacitado funcionário da Stasi,
a polícia política da Alemanha
Oriental. Estamos em 1984, cinco
anos antes da queda do Muro de
Berlim.
Ele bem que faz seus interrogatórios, impondo chantagens insuportáveis e privações de sono em cima
de qualquer suspeito de infidelidade
ao regime "democrático-popular"
que paga o seu salário.
Sua abordagem é profissional, burocrática, germânica.
Nada que se compare a enfiar uma
jovem, pouco importa se menor de
idade ou não, numa cela com dezenas de presos que irão estuprá-la semanas a fio e queimá-la com pontas
de cigarro. Mas aqui não vivemos
sob nenhum regime totalitário; em
termos de barbárie, entre nós há lugar para bastante "laissez-faire" e
espontaneísmo de massas.
Dizer isso não significa negar, é
claro, que se torturava à vontade nos
países comunistas. Aliás, esse é um
dos problemas de "A Vida dos Outros". Se o capitão Wiesler protagonizasse cenas medonhas de interrogatório, a estrutura dramática do filme estaria comprometida.
E dificilmente engoliríamos o epílogo da narrativa, que leva à conclusão de que aquele funcionário da
Stasi era, afinal, um "homem bom".
Ei-lo encarregado de vigiar, dia
após dia, a vida de um famoso dramaturgo, até então insuspeito de
qualquer atividade subversiva. No
sótão do prédio em que mora o simpático e puro Georg Dreyman, a Stasi instalou uma eficiente central de
escuta clandestina.
Nada de errado, no início, acontece por lá. Mas o capitão Wiesler está
obrigado a achar algo de comprometedor, custe o que custar. Seus superiores querem dificultar a vida do
dramaturgo, pelo simples fato de ele
ter um caso com uma atriz bonita
demais. E um alto burocrata do regime estava interessado na moça.
Não me estendo mais na história
do filme, que terá boas reviravoltas a
partir desse ponto. "A Vida dos Outros" deixa o espectador tenso do
início ao fim.
Seu protagonista é um policial sério e corretíssimo, dentro das regras
do regime. Mas as regras do regime
não foram feitas para serem obedecidas com seriedade e correção. A
hipocrisia fundamental do sistema é
que toda a retórica em favor do povo, do socialismo e da liberdade serve apenas para concentrar poder e
privilégio nas mãos de uns poucos
chefes.
O capitão Wiesler terá de decidir
se obedece às regras ou aos seus superiores. As duas opções exigirão, de
sua parte, um compromisso com a
mentira, com a esperteza e a dissimulação.
Naquela situação, era preciso ser
desonesto para não se transformar
num canalha. Mas a desonestidade
de um policial da Stasi não é algo que
se consiga disfarçar por muito tempo, e é atitude de máximo risco.
Por essas e outras é que o capitão
Wiesler, com os fones de ouvido
bem acoplados à cabeça ereta de
prussiano, derramará lágrimas de
emoção.
Também por isso, a história do filme parece um bocado implausível.
Apontar os dilemas éticos de um investigador da Alemanha Oriental
em 1984 significa sugerir que, na
carreira do protagonista, nada de
muito questionável havia ocorrido
até aquele momento.
Pelo menos, ele poderia estar estressado ou ter uma mulher grávida,
como o nosso capitão Nascimento.
Aqui talvez se notem melhor as diferenças entre um sistema e outro. No
Brasil de "Tropa de Elite", a regra do
jogo, que é torturar e fuzilar, não pode ser explicitada oficialmente e deve, entretanto, ser seguida.
Não há
dilema, e o capitão Nascimento é
menos um sujeito de decisões morais do que uma força elementar de
brutalidade sem grandes dúvidas
quanto ao acerto do que faz.
Na Alemanha de "A Vida dos Outros", as regras do jogo são explícitas
e codificadas, mas não podem ser
obedecidas. O dilema do capitão
Wiesler nasce a partir da crença inabalável nas regras oficiais que lhe foram ensinadas.
É uma situação bem germânica,
de burocracia estatal impecável, nazista ou comunista, violentando tudo o que um indivíduo possa ter de
humano e de livre. Nossa situação,
ao contrário, é bem "brasileira":
quanto mais "humano" e "livre", numa burocracia nem um pouco impecável, mais violência o indivíduo parece capaz de cometer. Quem quiser
que se ufane com isso.
coelhofsp@uol.com.br
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