|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Crítica/ "Estrela Distante"
Bolaño atesta vigor latino-americano
Romance curto mas denso satisfaz temas e obsessões de autor chileno, com imaginação que lembra Cortázar e Borges
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
A ficção do escritor chileno Roberto Bolaño, que
experimenta uma espécie de "boom" literário, especialmente nos Estados Unidos,
é exemplo do vigor com que se
firma nos dias de hoje a literatura latino-americana.
A exuberante imaginação de
Bolaño, vazada em estilo límpido e rigoroso que lembra Cortázar e Borges, alimenta o curto
mas denso "Estrela Distante",
no qual o leitor familiarizado
com o autor (falecido aos 50
anos em 2003) vai reencontrar
satisfeito muitos de seus temas
e obsessões: o mergulho no universo dos poetas e escritores
marginais e de vanguarda, a incursão por vezes jocosa pelo
macabro, a ligação com o romance policial.
O argumento de "Estrela Distante" está em "La Literatura
Nazi en América" (a literatura
nazista na América, ainda sem
tradução no Brasil), na qual Bolaño projeta uma breve enciclopédia imaginária sobre escritores reacionários da América do
Sul e do Norte.
Poesia aérea
O ponto de contato é a biografia de um certo poeta e piloto da Força Aérea Chilena, cuja
trilha de fumaça deixada no céu
em sua exibição de poesia aérea
contrasta com o rasto de sangue de seus inúmeros assassinatos.
O narrador de "Estrela Distante" está convencido de que
Alberto Ruiz-Tagle, um poeta
talentoso, estranho e evasivo
que costumava frequentar oficinas literárias em Concepción,
no sul do Chile, e depois desapareceu com a derrubada de
Allende em 1973, seria na realidade Carlos Wieder, o poeta-tenente que, durante a ditadura, empolga o país com suas exibições aéreas.
Como em outras obras, Bolaño não se atém a um único foco,
e também acompanha a trajetória de outros personagens,
como os fundadores das duas
oficinas de poesia que Ruiz-Tagle/Wieder visitava. Há, como
de hábito, uma mistura de referências a autores reais (Nicanor Parra, Octavio Paz, Georges
Perec) e inventados, além de
discussões alentadas sobre a
forma poética.
O primeiro texto deixado por
Wieder nos céus são versículos
do "Gênese" (depois, ele passa a
apresentar composições mais
pessoais), mas seu projeto havia começado antes com o homicídio e a tortura de vários outros poetas, sobretudo mulheres; o registro fotográfico desses crimes ensejaria mais tarde
uma monstruosa instalação
poética.
Nos anos 1960, os artistas de
vanguarda sonhavam em aliar a
esfera da arte à da vida, ou seja,
buscavam estabelecer uma conexão orgânica entre ética e estética. Wieder faz a ligação pelo
avesso, introduzindo a morte
ao invés da vida como esteio da
arte, numa fundamentação antiética que põe em xeque a ligação de alguns artistas com as
ditaduras (como ocorreu no
Chile ou Brasil, por exemplo).
Mas seus atos sugerem outras
consequências.
Como diz o narrador, os estetas neófitos e empenhados que
compareciam às oficinas de
poesia esqueciam que os sonhos muitas vezes se transformavam em pesadelo. O que Bolaño insinua é que, de par com
muitas das transgressões da
época, já se podia encontrar a
barbárie que viria a florescer
numa sociedade consumista e
niilista, carente de utopias, como a atual.
MARCELO PEN é professor de teoria literária na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
ESTRELA DISTANTE
Autor: Roberto Bolaño
Tradução: Bernardo Ajzenberg
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (144 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Trecho Próximo Texto: Edição traz entrevistas com autor Índice
|