São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS

Crítica/ "Estrela Distante"

Bolaño atesta vigor latino-americano

Romance curto mas denso satisfaz temas e obsessões de autor chileno, com imaginação que lembra Cortázar e Borges

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A ficção do escritor chileno Roberto Bolaño, que experimenta uma espécie de "boom" literário, especialmente nos Estados Unidos, é exemplo do vigor com que se firma nos dias de hoje a literatura latino-americana.
A exuberante imaginação de Bolaño, vazada em estilo límpido e rigoroso que lembra Cortázar e Borges, alimenta o curto mas denso "Estrela Distante", no qual o leitor familiarizado com o autor (falecido aos 50 anos em 2003) vai reencontrar satisfeito muitos de seus temas e obsessões: o mergulho no universo dos poetas e escritores marginais e de vanguarda, a incursão por vezes jocosa pelo macabro, a ligação com o romance policial.
O argumento de "Estrela Distante" está em "La Literatura Nazi en América" (a literatura nazista na América, ainda sem tradução no Brasil), na qual Bolaño projeta uma breve enciclopédia imaginária sobre escritores reacionários da América do Sul e do Norte.

Poesia aérea
O ponto de contato é a biografia de um certo poeta e piloto da Força Aérea Chilena, cuja trilha de fumaça deixada no céu em sua exibição de poesia aérea contrasta com o rasto de sangue de seus inúmeros assassinatos.
O narrador de "Estrela Distante" está convencido de que Alberto Ruiz-Tagle, um poeta talentoso, estranho e evasivo que costumava frequentar oficinas literárias em Concepción, no sul do Chile, e depois desapareceu com a derrubada de Allende em 1973, seria na realidade Carlos Wieder, o poeta-tenente que, durante a ditadura, empolga o país com suas exibições aéreas.
Como em outras obras, Bolaño não se atém a um único foco, e também acompanha a trajetória de outros personagens, como os fundadores das duas oficinas de poesia que Ruiz-Tagle/Wieder visitava. Há, como de hábito, uma mistura de referências a autores reais (Nicanor Parra, Octavio Paz, Georges Perec) e inventados, além de discussões alentadas sobre a forma poética.
O primeiro texto deixado por Wieder nos céus são versículos do "Gênese" (depois, ele passa a apresentar composições mais pessoais), mas seu projeto havia começado antes com o homicídio e a tortura de vários outros poetas, sobretudo mulheres; o registro fotográfico desses crimes ensejaria mais tarde uma monstruosa instalação poética.
Nos anos 1960, os artistas de vanguarda sonhavam em aliar a esfera da arte à da vida, ou seja, buscavam estabelecer uma conexão orgânica entre ética e estética. Wieder faz a ligação pelo avesso, introduzindo a morte ao invés da vida como esteio da arte, numa fundamentação antiética que põe em xeque a ligação de alguns artistas com as ditaduras (como ocorreu no Chile ou Brasil, por exemplo).
Mas seus atos sugerem outras consequências. Como diz o narrador, os estetas neófitos e empenhados que compareciam às oficinas de poesia esqueciam que os sonhos muitas vezes se transformavam em pesadelo. O que Bolaño insinua é que, de par com muitas das transgressões da época, já se podia encontrar a barbárie que viria a florescer numa sociedade consumista e niilista, carente de utopias, como a atual.

MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


ESTRELA DISTANTE

Autor: Roberto Bolaño
Tradução: Bernardo Ajzenberg
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (144 págs.)
Avaliação: ótimo




Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: Edição traz entrevistas com autor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.