São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 1998

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ANIVERSÁRIO
Godard, Truffaut e outros nomes do movimento sacramentaram idéia de que o autor do filme deve ser o diretor
Há 40 anos a nouvelle vague ronda o cinema

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Para alguns, a decadência do cinema francês começou ali. Para outros, foi o momento em que o cinema adquiriu plena consciência de sua modernidade.
O certo é que há 40 anos a nouvelle vague é esse espectro que ronda o cinema mundial.
Os jovens críticos franceses que se lançaram na direção a partir de "Nas Garras do Vício", de Claude Chabrol, no ano seguinte preparariam dois outros trabalhos que dariam ao movimento, a partir de 1959, uma dimensão explosiva: "Os Incompreendidos", de François Truffaut, e "O Acossado", de Jean-Luc Godard.
De início, o público encheu as salas de exibição para ver os filmes desses hereges que se dispunham a trabalhar com pequenos orçamentos, atores desconhecidos, cenários naturais, histórias coloquiais, equipamentos leves.
A nouvelle vague voltava as costas ostensivamente ao cinema francês "de qualidade", rejeitava a herança dos estúdios, incorporava a influência do cinema americano.
Na verdade, o movimento já se anunciara alguns anos antes, na revista "Cahiers du Cinéma", onde um grupo de jovens críticos -além de Chabrol, Truffaut e Godard, Eric Rohmer e Jacques Rivette- começou a atacar sem piedade os velhos ídolos -a começar por Henri-Georges Clouzot- e afirmar que as escolas realmente importantes do pós-guerra eram a italiana e a americana.
Levavam para as telas as idéias do teórico André Bazin, seu "maître à penser", e o inconformismo com um cinema francês que, segundo eles, era incapaz de se deter sobre pessoas comuns ou de compor diálogos semelhantes aos que se escutavam nas ruas.
Para além delas, era a primeira vez que um movimento cinematográfico partia da experiência de espectadores -eram todos cinéfilos. Não é um detalhe secundário: o cinema passava então a ser feito voltando-se sobre si mesmo, esmiuçando e revisando seu passado. Assumia-se como arte adulta.
O primeiro momento foi de lua-de-mel. O público lotou as salas, a crítica assinou embaixo. Já na virada da década de 50, no entanto, a situação se inverte: os segundos filmes de Truffaut ("Atire no Pianista") e Godard ("Uma Mulher É uma Mulher") não andam bem. Rohmer e Rivette (com "O Signo do Leão" e "Paris Nous Appartient", respectivamente) fracassam em sua estréia. A nouvelle vague começa a ser acusada de coveira do cinema francês.
Tarde demais, em todo caso. O movimento já agregara uma série de jovens cineastas que originalmente não faziam parte do grupo -Alain Resnais, Agnès Varda, Jacques Demy, Louis Malle- e se rearma, levando adiante uma guerra do novo contra o velho.
Paralelamente, o modo livre de filmar -a recusa de regras, a liberdade de experimentação- influencia quase todo o jovem cinema mundial e favorece o desenvolvimento de movimento afins, como o cinema novo, no Brasil, a nouvelle vague japonesa, o free cinema inglês e a escola de Nova York, nos EUA.
Ao longo dos anos 60, a política cinematográfica dá unidade ao grupo. Saem às ruas para sustentar Henri Langlois, fundador da Cinemateca Francesa, a quem o ministro da Cultura, André Malraux, tenta exonerar, no início de 1968. Atacam Malraux, seja por esse episódio, seja pela censura que impõe a certos filmes ("Uma Mulher Casada", de Godard, "A Religiosa", de Rivette).
É em 68, também, que a unidade do movimento se rompe. Godard adere ao cinema militante, funda o Grupo Dziga Vertov e renega sua obra "burguesa". Em 72, Godard e Truffaut rompem, quando o primeiro desaprova com todas as letras "A Noite Americana". Truffaut retruca com igual violência. Os dois não mais se reconciliariam até a morte de Truffaut, em 84.
Daí por diante, cada qual segue seu caminho. O movimento como tal está acabado, inclusive as cumplicidades de juventude. Torna-se mais fácil, então, perceber que, para além daquilo que os unia, cada cineasta desenvolvera uma obra pessoal, com poucas relações com a de seus colegas.
Hoje, a herança da nouvelle vague, aquilo que a unia, parece vir menos dos interesses comuns do que do fato de ter introduzido um novo sistema de produção, com características em larga medida inéditas, e de ter sacramentado a idéia de que o autor do filme -aquele que responde por sua concepção- deve ser o diretor e não mais o produtor.
Uma concepção que não nega, afinal, a origem dos criadores dessa corrente: se eram todos cinéfilos ferozes, tinham em comum a paixão pela literatura, de onde buscaram a idéia de que cineastas devem ser artistas, como os escritores, e não artesãos, como queria a indústria. Uma idéia que ainda dá pano para manga.



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