|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Orwell o homem incômodo
Escritor inglês, que teve cinco livros publicados no país recentemente, conheceu a doença e a miséria e soube retratar a pobreza com naturalidade
MATINAS SUZUKI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 13 de julho de 1944, o
poeta e editor T.S. Eliot (1888-1965) escreve uma carta a
George Orwell (1903-1950) recusando a publicação de "A Revolução dos Bichos". Pouco antes disso, o editor comunista de
Orwell também havia refugado
o mesmo livro.
Um outro editor, Jonathan
Cape, entusiasma-se inicialmente com os originais, mas
desiste de publicá-los após a
consulta a um amigo no Ministério da Informação britânico.
Hoje, desconfia-se que esse
amigo era Peter Smollett, nascido em Viena como Peter
Smolka. Ele havia sido cooptado por Moscou e tinha virado
agente duplo em Londres.
Todas as recusas tiveram
motivação política: no período
final da Segunda Guerra, tendo
a Rússia como aliada, havia
pouco ambiente no Reino Unido para se lançar uma alegoria
que ridicularizasse Stálin e seu
regime. Essa era a avaliação dos
editores. Na de George Orwell
era falta de coragem mesmo.
Na avaliação inconsciente do
público, sobrava espaço para
uma alegoria daquele tipo: os
primeiros 4.500 exemplares de
"A Revolução dos Bichos" que
saíram por uma editora pequena, em agosto de 1945, esgotaram-se rapidamente.
O livro mudaria a vida de Orwell, o homem incômodo. Finalmente ele se tornaria um escritor conhecido e poderia pôr
termo a uma vida limítrofe.
Mas o dinheiro e a fama vieram
em quantidades inversamente
proporcionais à saúde. Ele passaria os próximos anos lutando
contra a tuberculose.
Orwell morre, no início de
1950, aos 46 anos.
"A Revolução dos Bichos" é o
quinto livro de Orwell lançado
no Brasil em pouco mais de 12
meses. A atração pelo escritor é
tão intrigante quanto ampla: do
Big Brother (expressão do livro
"1984"), que reúne redes de TV
e teorias paranóicas sobre o
grande olhar controlador, até
uma retomada dos textos jornalísticos, passando pela obra
de maior interesse e pela estatura moral (Richard Rovere: "O
que todo mundo parece encontrar em Orwell é retidão e mais
retidão").
No Brasil
Não deixa de ser mais um curioso ziguezague do destino
que o tradutor brasileiro (uma
ótima tradução, embora um
pouquinho empertigada para o
estilo orwelliano) de "A Revolução dos Bichos", uma fabulação em torno da defesa da liberdade, tenha sido um colaborador do regime militar, Heitor
Aquino Ferreira.
A nova edição brasileira vem
suplementada por um comentário de Christopher Hitchens,
por um prefácio do autor à edição original que se julgava perdido e por outro que ele fez, em
1947, para os refugiados ucranianos alojados na Alemanha.
"Homenagem à Catalunha",
de 1938, é o lado B de "A Revolução dos Bichos". Nos seus primeiros dias na Guerra Civil espanhola, Orwell experimentou
a vida em um socialismo democrático quase inverossímil, entre anarquistas e trotskistas de
Barcelona.
Sua visão de que ali se iniciava mais uma revolução social
do que uma frente popular antifascista permanece historicamente correta, e encontra-se
na bem elaborada edição brasileira "Lutando na Espanha".
Orwell reviu as provas de "A
Revolução dos Bichos" enquanto cobria, entre a França e
a Alemanha, o final da Segunda
Guerra para o semanário liberal "The Observer".
Dono do "Observer", um dos
grandes editores de jornal do
século 20, o milionário David
Astor era um dos melhores
amigos de Orwell: em última
instância, emprestaria dinheiro para a uma edição do autor
de "A Revolução dos Bichos".
Astor também inaugurou o
hábito de usar um texto de 1946
de Orwell, "Os Políticos e a Língua Inglesa", como uma espécie de manual de redação para
jornalistas e colaboradores do
"Observer" (no que foi seguido
pela revista "The Economist").
No final do ano passado saiu
no Brasil uma seleção dos artigos e resenhas de Orwell para o
hebdomadário de Astor.
Dias de mendigo
Algumas das melhores coisas
que Orwell escreveu vêm da
sua experiência pessoal: os dias
como mendigo em Paris e Londres, a internação em um hospital para indigentes onde as
pessoas morriam aos montes,
um enforcamento, a execução
de um elefante, a vida de vendedor em uma livraria.
Essas narrativas aproximam
naturalmente a ingenuidade, o
nonsense, a linguagem simples
e sentimentos humanos profundos. Não param de surpreender, na sua aparente fragilidade de construção. Estão
cristalinas em alguns ensaios
da representativa antologia
"Dentro da Baleia" e no relato
"Na Pior em Londres e Paris",
suas duas outras publicações
brasileiras recentes.
Orwell, o homem com qualidades, viveu às portas do vagão
da terceira classe. Ao se castigar
com um ascetismo severo estava testando os seus limites e, ao
mesmo tempo, chicoteando os
parentes, os amigos, as convenções, a sociedade de classes...
Paradoxalmente, Orwell via
em alguns ascetas um dos piores defeitos de caráter, o egoísmo. Era essa a sua implicância
com Tolstói, mas parece ser
também uma de suas sombras
quando se olhava no espelho.
Isso explicaria em parte como a miséria nunca foi retratada por ele com comiseração ou
com exaltação, mas com espantosa naturalidade e até certa altivez. Já os ricos praticamente
não existem, merecem apenas
um desprezo auto-suficiente.
Comunismo
No final da vida, Orwell entregou uma lista de cripto-comunistas a uma amiga, a trotskista Celia Kirwan, por quem
foi apaixonado, que trabalhava
para o serviço de informação do
Ministério do Exterior britânico, cunhada de seu grande amigo Arthur Koestler.
O historiador Timothy Garton Ash, que levantou os documentos e os analisou detalhadamente, escreveu um artigo
sobre o assunto em 2003, em
que procura mostrar que, sendo o totalitarismo soviético o
grande confronto da vida de
Orwell, o caso precisaria passar
por esse viés.
Os comunistas perseguiram
Orwell na Espanha e procuraram impedir a publicação de
seus livros e seus artigos no
Reino Unido. Ele chegou a temer pela sua vida em Paris (episódio narrado por Hemingway). A certa altura passou a fazer, para consumo próprio,
uma lista de simpatizantes de
Moscou, pois achava que o
mundo do pós-guerra estava
insensível para o crescimento
do totalitarismo soviético.
Ash enumera vários atenuantes, entre eles o de que o
serviço de informações era semi-secreto e não secreto, que
ele agia como uma agência de
propaganda e não como uma
força policial, que ninguém da
lista de Orwell sofreu nenhum
tipo de perseguição pelo governo inglês; o qual, além disso, era
um governo democrático e não
uma ditadura fascista.
Orwell sempre lembrava que
a Inglaterra era o país do habeas corpus, o que não era pouco em uma Europa em chamas.
Os contemporâneos enxergavam em Orwell um homem
digno, independente, franco.
Depois da sua morte, houve a
tentativa de santificá-lo. Foi
um exagero, pois ele detestava
hagiografias: "Santos devem
ser considerados culpados até
que se prove sua inocência".
Orwell sabia que não era santo e que uma vida decente é feita com pecados.
MATINAS SUZUKI JR. é jornalista
Texto Anterior: Horário nobre na TV aberta Próximo Texto: Mônica Bergamo Índice
|