São Paulo, sábado, 13 de janeiro de 2007

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Orwell o homem incômodo

Escritor inglês, que teve cinco livros publicados no país recentemente, conheceu a doença e a miséria e soube retratar a pobreza com naturalidade

MATINAS SUZUKI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 13 de julho de 1944, o poeta e editor T.S. Eliot (1888-1965) escreve uma carta a George Orwell (1903-1950) recusando a publicação de "A Revolução dos Bichos". Pouco antes disso, o editor comunista de Orwell também havia refugado o mesmo livro.
Um outro editor, Jonathan Cape, entusiasma-se inicialmente com os originais, mas desiste de publicá-los após a consulta a um amigo no Ministério da Informação britânico.
Hoje, desconfia-se que esse amigo era Peter Smollett, nascido em Viena como Peter Smolka. Ele havia sido cooptado por Moscou e tinha virado agente duplo em Londres.
Todas as recusas tiveram motivação política: no período final da Segunda Guerra, tendo a Rússia como aliada, havia pouco ambiente no Reino Unido para se lançar uma alegoria que ridicularizasse Stálin e seu regime. Essa era a avaliação dos editores. Na de George Orwell era falta de coragem mesmo.
Na avaliação inconsciente do público, sobrava espaço para uma alegoria daquele tipo: os primeiros 4.500 exemplares de "A Revolução dos Bichos" que saíram por uma editora pequena, em agosto de 1945, esgotaram-se rapidamente. O livro mudaria a vida de Orwell, o homem incômodo. Finalmente ele se tornaria um escritor conhecido e poderia pôr termo a uma vida limítrofe.
Mas o dinheiro e a fama vieram em quantidades inversamente proporcionais à saúde. Ele passaria os próximos anos lutando contra a tuberculose. Orwell morre, no início de 1950, aos 46 anos.
"A Revolução dos Bichos" é o quinto livro de Orwell lançado no Brasil em pouco mais de 12 meses. A atração pelo escritor é tão intrigante quanto ampla: do Big Brother (expressão do livro "1984"), que reúne redes de TV e teorias paranóicas sobre o grande olhar controlador, até uma retomada dos textos jornalísticos, passando pela obra de maior interesse e pela estatura moral (Richard Rovere: "O que todo mundo parece encontrar em Orwell é retidão e mais retidão").

No Brasil
Não deixa de ser mais um curioso ziguezague do destino que o tradutor brasileiro (uma ótima tradução, embora um pouquinho empertigada para o estilo orwelliano) de "A Revolução dos Bichos", uma fabulação em torno da defesa da liberdade, tenha sido um colaborador do regime militar, Heitor Aquino Ferreira.
A nova edição brasileira vem suplementada por um comentário de Christopher Hitchens, por um prefácio do autor à edição original que se julgava perdido e por outro que ele fez, em 1947, para os refugiados ucranianos alojados na Alemanha.
"Homenagem à Catalunha", de 1938, é o lado B de "A Revolução dos Bichos". Nos seus primeiros dias na Guerra Civil espanhola, Orwell experimentou a vida em um socialismo democrático quase inverossímil, entre anarquistas e trotskistas de Barcelona.
Sua visão de que ali se iniciava mais uma revolução social do que uma frente popular antifascista permanece historicamente correta, e encontra-se na bem elaborada edição brasileira "Lutando na Espanha".
Orwell reviu as provas de "A Revolução dos Bichos" enquanto cobria, entre a França e a Alemanha, o final da Segunda Guerra para o semanário liberal "The Observer".
Dono do "Observer", um dos grandes editores de jornal do século 20, o milionário David Astor era um dos melhores amigos de Orwell: em última instância, emprestaria dinheiro para a uma edição do autor de "A Revolução dos Bichos".
Astor também inaugurou o hábito de usar um texto de 1946 de Orwell, "Os Políticos e a Língua Inglesa", como uma espécie de manual de redação para jornalistas e colaboradores do "Observer" (no que foi seguido pela revista "The Economist").
No final do ano passado saiu no Brasil uma seleção dos artigos e resenhas de Orwell para o hebdomadário de Astor.

Dias de mendigo
Algumas das melhores coisas que Orwell escreveu vêm da sua experiência pessoal: os dias como mendigo em Paris e Londres, a internação em um hospital para indigentes onde as pessoas morriam aos montes, um enforcamento, a execução de um elefante, a vida de vendedor em uma livraria.
Essas narrativas aproximam naturalmente a ingenuidade, o nonsense, a linguagem simples e sentimentos humanos profundos. Não param de surpreender, na sua aparente fragilidade de construção. Estão cristalinas em alguns ensaios da representativa antologia "Dentro da Baleia" e no relato "Na Pior em Londres e Paris", suas duas outras publicações brasileiras recentes.
Orwell, o homem com qualidades, viveu às portas do vagão da terceira classe. Ao se castigar com um ascetismo severo estava testando os seus limites e, ao mesmo tempo, chicoteando os parentes, os amigos, as convenções, a sociedade de classes...
Paradoxalmente, Orwell via em alguns ascetas um dos piores defeitos de caráter, o egoísmo. Era essa a sua implicância com Tolstói, mas parece ser também uma de suas sombras quando se olhava no espelho. Isso explicaria em parte como a miséria nunca foi retratada por ele com comiseração ou com exaltação, mas com espantosa naturalidade e até certa altivez. Já os ricos praticamente não existem, merecem apenas um desprezo auto-suficiente.

Comunismo
No final da vida, Orwell entregou uma lista de cripto-comunistas a uma amiga, a trotskista Celia Kirwan, por quem foi apaixonado, que trabalhava para o serviço de informação do Ministério do Exterior britânico, cunhada de seu grande amigo Arthur Koestler.
O historiador Timothy Garton Ash, que levantou os documentos e os analisou detalhadamente, escreveu um artigo sobre o assunto em 2003, em que procura mostrar que, sendo o totalitarismo soviético o grande confronto da vida de Orwell, o caso precisaria passar por esse viés.
Os comunistas perseguiram Orwell na Espanha e procuraram impedir a publicação de seus livros e seus artigos no Reino Unido. Ele chegou a temer pela sua vida em Paris (episódio narrado por Hemingway). A certa altura passou a fazer, para consumo próprio, uma lista de simpatizantes de Moscou, pois achava que o mundo do pós-guerra estava insensível para o crescimento do totalitarismo soviético.
Ash enumera vários atenuantes, entre eles o de que o serviço de informações era semi-secreto e não secreto, que ele agia como uma agência de propaganda e não como uma força policial, que ninguém da lista de Orwell sofreu nenhum tipo de perseguição pelo governo inglês; o qual, além disso, era um governo democrático e não uma ditadura fascista.
Orwell sempre lembrava que a Inglaterra era o país do habeas corpus, o que não era pouco em uma Europa em chamas.
Os contemporâneos enxergavam em Orwell um homem digno, independente, franco.
Depois da sua morte, houve a tentativa de santificá-lo. Foi um exagero, pois ele detestava hagiografias: "Santos devem ser considerados culpados até que se prove sua inocência".
Orwell sabia que não era santo e que uma vida decente é feita com pecados.


MATINAS SUZUKI JR. é jornalista

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