São Paulo, sábado, 13 de janeiro de 2007

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Crítica/compilação

Coletânea traz Fernando Pessoa como defensor do liberalismo

VINICIUS MOTA
EDITOR DE OPINIÃO

Quando o liberalismo submergia, Fernando Pessoa lhe prestou efêmera mas sólida homenagem.
Vale a pena ouvir o poeta falar de novo, depois que a doutrina retornou à superfície com a força dos fenômenos naturais.
A proposta é de Gustavo Franco, organizador do volume "A Economia em Pessoa". O ex-presidente do Banco Central não se limitou a republicar a breve série de artigos sobre comércio do português, quase todos de 1926. Redigiu prefácio, definiu títulos e elaborou apresentações com o fito de mostrar que Pessoa daria ótimo polemista liberal na atualidade.
"Governança corporativa", "privatização", globalização", "clusters", "branding" são alguns dos termos fora do tempo de Pessoa que vieram, pela pena de Franco, dar mote aos textos do poeta. O uso desse anacronismo provocativo produz resultados interessantes.

Desregulamentação
"Contra as Algemas no Comércio" é o artigo que melhor cumpre o programa de Franco.
Veste à perfeição o figurino "Desregulamentação" do título dado pelo organizador. Fosse publicado hoje em uma revista como a britânica "The Economist", ninguém estranharia.
Fernando Pessoa condena a restrição, pelo Estado, de qualquer tipo de comércio. Barrar importações de artigos de luxo não evita a desvalorização da moeda, pois os outros países tendem a fazer o mesmo.
"Resultado final: prejuízo para o importador; nenhuma influência no câmbio; prejuízo para o exportador; irritação do consumidor." Todo entrave à troca livre prejudica a população, diz Pessoa. Franco identifica no poeta o "moderníssimo apelo aos "interesses difusos", consumidores e contribuintes como vítimas contumazes do voluntarismo estatal".
A atualidade de Pessoa como polemista liberal tem suas explicações. Uma diz respeito ao caráter algo genérico das discussões. A "Revista de Comércio e Contabilidade", para a qual o poeta escreveu a maioria dos textos, alvejava um público devotado a coisas práticas. Daí a linguagem leve, as narrativas alegóricas, os conselhos e os aforismos de auto-ajuda.
Além disso, o poeta passou a juventude em colônias inglesas sul-africanas. Formou-se em escola britânica e estudou comércio. Adulto, não viveu das artes, mas de cuidar da correspondência estrangeira e de traduções em firmas comerciais.
A melhor tradição liberal britânica fala nos textos de Pessoa sobre comércio. "Quanto mais o Estado intervém na vida espontânea da sociedade, mais risco há de a estar prejudicando", poderia vir de Adam Smith ou John Stuart Mill. O artigo sobre "as algemas" poderia ser assinado por Herbert Spencer (é inspirado em "O Homem contra o Estado", de 1884).
O curioso é que Pessoa, em 1926, pregava no deserto. Desde 1870, a hegemonia das idéias e das instituições liberais vinha sendo solapada. A Revolução Russa e a Grande Guerra eram apenas os golpes mais recentes.
Ainda sobreviriam a devastadora crise econômica de 1929 e o auge das ditaduras fascistas.
Pessoa notava a transformação. "O aparecimento de concorrências nacionais sobrepondo-se às individuais e o desenvolvimento do princípio sindical" marcavam, dizia, a novíssima etapa da evolução do comércio. Mas, pelo visto, ele não se acomodava àquela onda; era um homem de outro tempo.
Encerrou logo a carreira de articulista econômico e foi cuidar de poesia. De volta, 80 anos depois, o Fernando Pessoa comerciante já não fala sozinho.


A ECONOMIA EM PESSOA    
Organização: Gustavo Franco
Editora: Reler
Quanto: R$ 44 (186 págs.)


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