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Crítica/compilação
Coletânea traz Fernando Pessoa como defensor do liberalismo
VINICIUS MOTA
EDITOR DE OPINIÃO
Quando o liberalismo
submergia, Fernando
Pessoa lhe prestou efêmera mas sólida homenagem.
Vale a pena ouvir o poeta falar
de novo, depois que a doutrina
retornou à superfície com a força dos fenômenos naturais.
A proposta é de Gustavo
Franco, organizador do volume
"A Economia em Pessoa". O ex-presidente do Banco Central
não se limitou a republicar a
breve série de artigos sobre comércio do português, quase todos de 1926. Redigiu prefácio,
definiu títulos e elaborou apresentações com o fito de mostrar
que Pessoa daria ótimo polemista liberal na atualidade.
"Governança corporativa",
"privatização", globalização",
"clusters", "branding" são alguns dos termos fora do tempo
de Pessoa que vieram, pela pena de Franco, dar mote aos textos do poeta. O uso desse anacronismo provocativo produz
resultados interessantes.
Desregulamentação
"Contra as Algemas no Comércio" é o artigo que melhor
cumpre o programa de Franco.
Veste à perfeição o figurino
"Desregulamentação" do título
dado pelo organizador. Fosse
publicado hoje em uma revista
como a britânica "The Economist", ninguém estranharia.
Fernando Pessoa condena a
restrição, pelo Estado, de qualquer tipo de comércio. Barrar
importações de artigos de luxo
não evita a desvalorização da
moeda, pois os outros países
tendem a fazer o mesmo.
"Resultado final: prejuízo para o importador; nenhuma influência no câmbio; prejuízo
para o exportador; irritação do
consumidor." Todo entrave à
troca livre prejudica a população, diz Pessoa. Franco identifica no poeta o "moderníssimo
apelo aos "interesses difusos",
consumidores e contribuintes
como vítimas contumazes do
voluntarismo estatal".
A atualidade de Pessoa como
polemista liberal tem suas explicações. Uma diz respeito ao
caráter algo genérico das discussões. A "Revista de Comércio e Contabilidade", para a
qual o poeta escreveu a maioria
dos textos, alvejava um público
devotado a coisas práticas. Daí
a linguagem leve, as narrativas
alegóricas, os conselhos e os
aforismos de auto-ajuda.
Além disso, o poeta passou a
juventude em colônias inglesas
sul-africanas. Formou-se em
escola britânica e estudou comércio. Adulto, não viveu das
artes, mas de cuidar da correspondência estrangeira e de traduções em firmas comerciais.
A melhor tradição liberal britânica fala nos textos de Pessoa
sobre comércio. "Quanto mais
o Estado intervém na vida espontânea da sociedade, mais
risco há de a estar prejudicando", poderia vir de Adam Smith
ou John Stuart Mill. O artigo
sobre "as algemas" poderia ser
assinado por Herbert Spencer
(é inspirado em "O Homem
contra o Estado", de 1884).
O curioso é que Pessoa, em
1926, pregava no deserto. Desde 1870, a hegemonia das idéias
e das instituições liberais vinha
sendo solapada. A Revolução
Russa e a Grande Guerra eram
apenas os golpes mais recentes.
Ainda sobreviriam a devastadora crise econômica de 1929 e
o auge das ditaduras fascistas.
Pessoa notava a transformação. "O aparecimento de concorrências nacionais sobrepondo-se às individuais e o desenvolvimento do princípio sindical" marcavam, dizia, a novíssima etapa da evolução do comércio. Mas, pelo visto, ele não
se acomodava àquela onda; era
um homem de outro tempo.
Encerrou logo a carreira de
articulista econômico e foi cuidar de poesia. De volta, 80 anos
depois, o Fernando Pessoa comerciante já não fala sozinho.
A ECONOMIA EM PESSOA
Organização: Gustavo Franco
Editora: Reler
Quanto: R$ 44 (186 págs.)
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